No passado mês de novembro, foi celebrada em Quito a Cúpula de Comunidades Criminalizadas por Defender a Natureza. A criminalização faz parte de uma estratégia que visa fazer calar qualquer protesto contra as atividades extrativas das transnacionais dentro das fronteiras do Equador. Parece que o próximo acusado pode ser qualquer um. Basta que erga sua voz contra a irracionalidade da economia global.
A maioria dos casos acontece nas últimas áreas remanescentes de floresta tropical no país- onde também estão localizados os recursos mineiros e petroleiros. Na reunião foram analisadas as circunstâncias do número crescente destes casos de criminalização injusta de índios e camponeses que se opõem às atividades empresariais de extração, tanto nacionais quanto transnacionais.
O encontro de Quito quis e conseguiu ser um primeiro passo para “visibilizar, junto à opinião pública nacional e internacional, a escalada de perseguições políticas, judiciais e para- judiciais a líderes sociais defensores da natureza e da vida, diante de um modelo de desenvolvimento economicista, que viola os direitos”, tal e como anunciava a convocação à Cúpula. No Equador, a criminalização aos camponeses tem ocorrido no Norte, na região subtropical de Intag e atualmente no Sul do país, na região amazônica.
Alguns dos participantes do evento pareciam aliviados ao verem que não são os únicos que estão vivenciando essa situação. Polícia, tribunais, investigações, indagações, sentenças, juízes, advogados, fiscais, médicos. Este mundo surpreendeu repentinamente a todos eles. Alguns viraram especialistas em leis e procedimento penal. Não é estranho, quando uma única pessoa deve enfrentar dez, quinze e até vinte julgamentos.
É o caso de Tarquino Cajamarca, do cantão Limón Indanza na província amazônica de Morona Santiago, perseguido pela Sipetrol, gestora do projeto Hidroabanico; de Rodrigo Aucay de El Pangui na província amazônica Zamora Chinchipe, perseguido pela mineradora Corrientes Resource da canadense Ecuacorrientes; de Polibio Pérez, da região subtropical de Intag, que foi perseguido pela mineradora canadense Ascendant Cooper. No evento foram ouvidos testemunhos sobre esses casos. O maior crime dos três líderes comunitários, respeitados e reconhecidos em suas regiões de origem, talvez tenha sido o fato de ter se oposto mais energicamente às atividades das transnacionais, conforme afirmam os representantes das organizações de direitos humanos. Infelizmente não são casos isolados.
Os custos para defender esses líderes e todos os camponeses acusados são enormes, tanto em termos econômicos quanto em esforço físico e psicológico. Não se trata apenas dos honorários dos advogados que devem ser pagos. As distâncias que os criminalizados devem percorrer até chegar às audiências são enormes. Muitos deles moram em paragens remotas, onde quase não existia a delinqüência até a chegada das transnacionais a essas regiões. Estas pessoas estão sendo vitimadas por um modelo de desenvolvimento completamente alheio a suas formas de vida e de entender o mundo. Alguns foram detidos na cadeia, outros foram obrigados a ficar escondidos durante dias ou semanas para evitar a prisão, e assim foram afastados de suas famílias e suas atividades cotidianas. Atualmente, há um mandado de apreensão contra Tarquino Cajamarca de Limón Indanza.
A defesa é difícil. Em muitos casos, a acusação não é feita diretamente pelas transnacionais ou pessoas abertamente relacionadas com elas, mas por pessoal pago para dar falso testemunho e acusar os líderes camponeses de crimes comuns que eles não cometeram. Em alguns dos processos, depoimentos idênticos de várias testemunhas evidenciaram que estavam repetindo um roteiro que tinham recebido previamente. A Comissão Ecumênica de Direitos Humanos CEDHU bem como a Fundação Regional de Assessoria em Direitos Humanos INREDH, ambas com sede em Quito, possuem documentação completa sobre inúmeros casos. Conforme um integrante da INREDH, os camponeses vêm sendo vinculados a listas negras. Roubam deles material de trabalho como computadores, como parte de uma estratégia para imobilizar as organizações de reivindicação social. A Unidade de Investigação da CEDHU informa também sobre inúmeros casos de agressões por parte do pessoal das empresas extrativas ou de pessoal pago por elas, que incluem ameaças de morte, perseguição, agressões físicas, fustigamento, calúnias, entre outras.
Cada vez há mais acusados de crimes comuns que eles não cometeram, e por isso é necessária e urgente a tomada de providências. O número de líderes comunitários e camponeses que vêm sendo criminalizados por empresas como resposta à resistência que opõem algumas comunidades às atividades extrativas de petróleo, mineração ou outras nas áreas de floresta tropical é asustador. Conforme a Unidade de Investigação da CEDHU, as acusações ultrapassam a centena, e os acusados são bem mais, já que deve considerar-se que grande parte destas causas são múltiplas, quer dizer, que acusam mais de uma pessoa. Todos eles sabem muito bem por que se opõem a essas atividades econômicas: “Quem foi beneficiado com os 30 anos de exploração petroleira? As ruas dos países do Norte estão cada vez mais enfeitadas e iluminadas, enquanto em Lago Agrio (cidade petroleira na Amazônia Equatoriana) os moradores continuam na escuridão, e pior ainda, doentes de câncer e contaminados”, diz Humberto Cholango, presidente da Ecuarunari. Muitas populações manifestam que não querem acabar em condições semelhantes e por isso rejeitam a extração dos recursos naturais em suas regiões. Existe uma forte resistência à mineração em Intag, Pacto, El Pangui, Napo, Machala e em outros cantos do país.
“Nós, os povos, somos paridos pela mãe terra e é por isso que devemos defendê-la”, diz Cholango. “Mas sem violência”, especifica Esperanza Martínez, presidenta da Ação Ecológica- organização que também participou do encontro. “A não- violência é uma arma muito mais poderosa, e para defendermos a natureza não pode ser de outra forma”, acrescenta. Mesmo assim, os líderes e camponeses são acusados de crimes de sabotagem e terrorismo, atentados contra a segurança do país, rebelião e atentados a funcionários públicos, apologia do delito, associação ilícita, crimes contra a propriedade como o roubo e crimes contra as pessoas como o seqüestro. Com esses crimes comuns tentam disfarçar as ações da resistência popular, e, de quebra, encarcerar as pessoas que exercem maior oposição às atividades das empresas em seus territórios a fim de eliminá-las ou neutralizá-las . Para o trabalho sujo, são contratados paramilitares ou sicários. Isso já aconteceu reiteradas vezes no Equador.
Na região subtropical de Intag, quatro dos 15 processos iniciados pela mineradora canadense Ascendant Cooper foram concluídos com resoluções absolutórias e favoráveis aos comuneiros injustamente acusados. “A justiça nos deu a razão”, diz Robinson Guachagmira, que expôs o caso de Intag durante o encontro de Quito, “Eu mesmo estive oito dias na cadeia, os piores dias da minha vida, nos quais me consolava ao pensar que esse sacrifício poderia contribuir para que o meio ambiente e as florestas de minha região permanecessem intocados para as futuras gerações”. Mais de 90 pessoas da região noroeste de Intag foram surpreendidas com esse tipo de denúncias arbitrárias.
Conforme o Dr. Raúl Moscoso, advogado engajado com as causas sociais e presente na Cúpula, “Os atos de resistência das comunidades são atos políticos”. O doutor Moscoso elaborou e sustentou a primeira versão da proposta de Lei de Anistia para este tipo de casos. A elaboração desse projeto de Lei de Anistia e a conformação de uma Rede Internacional de pessoas afetadas para evitar o enfrentamento isolado e individual às acusações, foram algumas das soluções propostas ao gravíssimo problema da criminalização a camponeses, bem como a proposta de iniciativas de mobilização conjunta. Com a proposta da Lei de Anistia, que no mesmo dia da Cúpula foi possível colocar nas mãos de Alberto Acosta, presidente da Assembléia Constituinte bem como apresentar junto à Fiscalia Geral da Nação, o objetivo é proteger as pessoas que participarem de ações de resistência comunitária em execução ou que venham a ser executadas. Esta Anistia geral deveria poder ser aplicada aos casos individuais. Também deveria incluir a anistia por responsabilidade civil.
Infelizmente, este fenômeno da criminalização não é um fato isolado nem exclusivo do Equador. Em outros países da América Latina também ocorre em idênticas condições, associado a outras indústrias extrativas ou ao agronegócio, como é o caso da cultura maciça de soja no Paraguai, ou de dendezeiro na Colômbia, onde as empresas também usam indiscriminadamente a denúncia e a acusação contra a população camponesa afro- colombiana, para fazer calar a voz discordante que quiser impedir o desenvolvimento da atividade econômica empresarial em terras comunitárias. Também em relação com a mineração bem recentemente ocorreu o caso da criminalização de 7 índios Maya Mam na Guatemala. Idênticas notícias chegam desse país: “Através do julgamento encenado, a empresa visa enfraquecer o movimento social anti-mina que está lutando por seus direitos no município de San Miguel Ixtahuacan, enquanto consegue espalhar sua exploração na região e desestruturar socialmente as organizações que se opõem à exploração mineira”, conforme a organização Derechos en Acción, desse país.
ÚLTIMA HORA: O assunto da criminalização do protesto social é de raivosa atualidade no Equador ao ser detida a Prefeita da província amazônica de Orellana, acusada de ter organizado o protesto social que culminou no dia 29 de novembro em Tiguino e Dayuma. Com ela, foram detidas mais 22 pessoas. Criminalizados. Suas reclamações: pavimentação de uma estrada, fornecimento de água e luz, e reparação dos danos no ambiente e na saúde causados pela extração petroleira. Por isso, a província está em estado de emergência e foi declarado o toque de recolher. Por sua vez, o presidente Correa, em diferentes atos públicos, fez referência ao protesto social, chamando os ecologistas de esquerdistas, românticos, infantis e até de terroristas, desconhecendo o fato de o protesto proceder dos moradores e não dos “ecologistas”. Na raiz da ira do presidente está a intenção de explorar, a qualquer preço, minas e petróleos, em uma desesperada busca de recursos, e apesar de ter se apresentado reiteradamente como “amigo da população indígena”, que seria a principal afetada em todos os sentidos. Parece que o presidente não gosta da resistência social legítima que gerou o balanço de 30 anos de exploração petroleira na Amazônia, onde a pobreza e o abandono persistem apesar de tudo o que foi prometido pelas petroleiras.
Em conclusão podemos apontar que é necessária a união dos líderes e camponeses afetados, em nível nacional e internacional e uma resposta acorde com o problema da criminalização por parte das instituições do Governo para evitar a persistência dessa situação, bem como a garantia de mecanismos- como a Lei de Anistia- que impeçam a fustigação da população por parte das transnacionais e do próprio Governo. Quem for defensor do meio ambiente, das florestas tropicais e dos direitos humanos pode ser o próximo acusado de sabotagem, terrorismo, roubo, seqüestro, injúrias, incêndio, lesões ou associação ilícita. Mas não devemos esquecer que, acima de tudo, defender os direitos continua sendo uma responsabilidade de todos.
Por Guadalupe Rodríguez, Campaigner Selvas Tropicales y Derechos Humanos, Salva la Selva, Latinoamérica, correio electrônico: guadalupe@regenwald.org, www.salvalaselva.org, www.activistas.nireblog.com