Em uma carta pública assinada por diferentes organizações sociais e personalidades do Brasil, a Rede Alerta Contra o Deserto Verde denuncia e rejeita a certificação através do programa do governo brasileiro CERFLOR, da enorme companhia plantadora e uma das maiores produtoras de celulose de eucalipto branqueada no estado do Espírito Santo, a Aracruz Celulose.
É com revolta que a Rede Alerta contra o Deserto Verde vê o processo de certificação CERFLOR do “manejo florestal” da empresa Aracruz Celulose. Essa empresa possui 146 mil hectares de terras no estado do Espírito Santo, dos quais 93 mil hectares são cobertos com monocultura de eucalipto.
Afirmamos mais uma vez que uma monocultura industrial, em larga escala, nunca pode ser certificada por ser insustentável. O plantio de eucalipto é “sustentável”, apenas para Aracruz que aumenta a sua produtividade, às custas de um elevado consumo e da poluição dos recursos hídricos, da morte de peixes e de animais, e tantos outros impactos socioambientais envolvendo comunidades indígenas, quilombolas e de pequenos produtores que sempre habitavam a região que se tornou conhecida atualmente como Deserto Verde. O seu modo de vida foi modificado em prol da Aracruz que destruiu a mata atlântica, acabando assim com a fonte de uma verdadeira sustentabilidade para essas comunidades.
Entendemos que o CERFLOR não merece o mínimo de credibilidade por parte das organizações, movimentos, comunidades e cidadãos da sociedade civil. A sociedade civil foi explicitamente excluída da discussão sobre objetivos, princípios e critérios deste sistema de certificação. Até hoje nem sabemos quais são os princípios e critérios que a empresa certificadora, a BVQI, vai utilizar neste processo de certificação, e se quisermos saber, precisamos comprar a documentação relativa ao procedimento de certificação estabelecido pelo CERFLOR, o que a caracteriza como não transparente. Além disso, não há exigências sociais ou ambientais mínimas relacionadas ao certificado CERFLOR. A referência é basicamente a legislação brasileira.
No caso da Aracruz Celulose, a tentativa de certificação das suas áreas no Espírito Santo parece até algo provocador para todos que conhecem de perto a atuação e postura dos dirigentes da empresa com as comunidades locais e seu ambiente, ao longo dos últimos 35 anos. Citamos alguns exemplos de conflitos, alguns mais antigos, outros mais recentes:
- a Aracruz Celulose continua ocupando cerca de 10.500 hectares de terras indígenas Tupinikim e Guarani no município de Aracruz. São terras que já foram reconhecidas como indígenas pelo governo federal, porém foram excluídas da última demarcação, ocorrida em 1998. Na época, o próprio governo federal, pressionado pela Aracruz Celulose, cometeu um ato ilegal ao reduzir a terra a ser demarcada. Fica então a pergunta: como certificar uma empresa que ocupa e explora terra indígena?
- a Aracruz Celulose invadiu as terras de quilombolas no Norte do Espírito Santo, expulsando milhares de pessoas e plantando eucaliptos. Nos últimos anos, 34 comunidades de quilombolas estão num processo de rearticulação e reorganização para garantir seu reconhecimento, a devolução e a demarcação das suas terras, contando com apoio da Fundação Palmares, do INCRA e da sociedade civil organizada. No entanto, o CERFLOR pretende conceder um certificado a uma empresa que ocupa e explora terras de comunidades quilombolas.
- Moradores de Vila do Riacho que faziam carvão dos restos de eucalipto da Aracruz, tiveram neste ano seus fornos destruídos numa ação articulada entre a Prefeitura de Aracruz, a empresa, polícias e a ‘milícia armada' da empresa Aracruz: a Visel. O resíduo de eucalipto – restos de galhos e troncos – se constituem na única fonte de sobrevivência para comunidades que foram alijadas do seu modo de vida.
Atualmente essa empresa é considerada ambientalmente correta porque tem uma máquina que tritura estes restos para que o material orgânico seja reincorporado na terra. Só falta Aracruz ganhar mais um prêmio ambiental com isso... Agora, como certificar uma empresa que tira a única fonte de sobrevivência de famílias sem terra, de quilombolas, de índios, deixando-as passar fome?
- Em outubro deste ano, a Aracruz destruiu quatro casas de moradores numa área de Barra do Riacho, próximo ao seu complexo industrial. Esse ato desumano e criminoso ocorreu a partir de uma liminar de uma Juíza do município de Aracruz. Os advogados da empresa alegaram que as famílias seriam ‘invasores' da terra da Aracruz. Após a destruição das casas ficou comprovado na justiça que as famílias moravam no lugar há mais de 10 anos. Barbaramente, a Aracruz destruiu as casas e arrancou todos os plantios de banana, mandioca e abacaxi. A partir de um recurso, apresentado por um advogado das famílias, a juíza entendeu que foi enganada pela multinacional Aracruz e obrigou a empresa a reconstruir as casas em 10 dias. Falta ainda a Aracruz indenizar as famílias pelos danos morais e materiais. É essa uma empresa que merece receber um certificado de manejo florestal, enquanto continua praticando atos de violência contra os moradores locais, igual praticou contra os índios, quilombolas e pequenos produtores ao longo dos últimos 35 anos, inclusive com o apoio da ditadura militar?
- No Norte do Espírito Santo, centenas de famílias continuam acampadas esperando por um pedaço de terra, enquanto o maior latifundiário do estado, a empresa Aracruz, pode continuar comprando e arrendando terras, a preços acima do mercado, e plantando eucalipto. Agora, como certificar uma empresa que atrapalha mais ainda a reforma agrária?
Estes são apenas alguns exemplos da violência praticada pela Aracruz, com apoio dos governos, contra direitos fundamentais de comunidades locais, direitos que são garantidos a essas populações pela Constituição Brasileira e por acordos internacionais sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, assinados e ratificados pelo Brasil. Os exemplos mostram que, se o CERFLOR ao menos leva a legislação brasileira a sério, a empresa Aracruz nunca poderia receber este selo.
E por último, tampouco adianta discutir condicionantes para tanta insustentabilidade. As comunidades locais estão cansadas dos impactos cometidos pela monocultura do eucalipto. Querem alternativas baseadas na produção de alimentos na terra através de uma ampla reforma agrária, querem reflorestamento com espécies que melhorem o meio ambiente local e ofereçam múltiplas opções de uso, os índios e quilombolas querem suas terras de volta, e sobretudo, todos querem ser respeitados nos seus direitos mais fundamentais.
Por: Rede Alerta contra o Deserto Verde, dezembro de 2004, enviado por Winfridus Overbeek, FASE – ES, Email: winnie.fase@terra.com.br