Peru: desenvolvimento de políticas para os povos indígenas em isolamento voluntário

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Em 1990 o estado peruano estabeleceu a Reserva Kugapakori/Nahua com o fim de proteger as vidas, direitos e territórios dos povos indígenas no Sudeste do Peru, evitando ou limitando estrictamente seu contato com a sociedade nacional. Apesar da proteção desses territórios no papel, desde sua criação a Reserva tem estado continuamente ameaçada pelo corte ilegal de árvores e há dois anos foi aberta para a extração de gás natural como parte do Projeto de Gás de Camisea (Vide “Projeto de gás de Camisea vulnera direitos dos povos indígenas”. Boletim do WRM No. 62, setembro de 2002). Diante dessas ameaças, alguns dos habitantes que tinham estabelecido contato com os estranhos começaram a exprimir suas próprias opiniões sobre a Reserva e sua incapacidade de proteger seus territórios e direitos.

Para focalizar esses desafios, um grupo de ONGs peruanas e Federações Indígenas formaram um comitê para defender e fortalecer a Reserva tanto no papel quanto efetivamente. Foi claro para o Comitê que na situação atual a Reserva nem funcionava para evitar a exploração por estranhos, nem satisfazia as necessidades de seus habitantes. O desafio era como considerar as diferentes necessidades e interesses de todos seus habitantes, incluindo aqueles que evitavam qualquer contato e traduzi-los em conceitos legais e recomendações práticas. Esperava-se que as propostas servissem como modelo para desenvolver leis e políticas para proteger os direitos dos povos indígenas que viviam em isolamento não apenas dentro da Reserva Kugapakori/Nahua mas em todo o Peru.

Depois de 18 meses de trabalho de campo e análise legal o trabalho do Comitê está quase acabado e em novembro de 2004 se apresentarão as propostas aos principais representantes do estado peruano. O presente artigo resenha brevemente os desafios enfrentados pelo Comitê e os meios pelos que o projeto têm procurado superá-los. Espera-se que os processos, metodologias e termos de referência desenvolvidos através deste processo possam servir a outras instituições que querem desenvolver políticas para apoiar aos povos indígenas em isolamento na América Latina e em outros lugares.

Até 1984 os Nahua, um povo indígena que fala Panoan, vivia nas cabeceiras do Purus, bacias do Manu e do Mishagua no Sudeste do Peru, evitando qualquer contato direto com estranhos e atacando a qualquer pessoa que ingressasse em seu território. Em abril de 1984 esse isolamento acabou quando quatro Nahua foram capturados por madeireiros e levados a Sepahua, a cidade local, antes de ser enviados de volta a suas vilas. Um ano depois, mais da metade dos Nahua tinham morrido por causa de resfriados e outras doenças respiratórias introduzidas por esse primeiro contato e os madeireiros tinham aproveitado sua debilidade e tinham invadido seu território.

Em 1990 o estado peruano estabeleceu a Reserva Estatal Kugapakori/Nahua para proteger os povos indígenas na região que ainda evitavam qualquer contato direto com os estranhos ou aqueles povos como os Nahua que apenas recentemente tinham estabelecido esse contato. No entanto, na prática a Reserva não conseguiu proteger consistentemente os territórios e direitos de seus habitantes e desde seu estabelecimento tem estado invadida por madeireiros, sobreposta com concessões madeireiras ilegais e aberta para a extração de gás natural. Isso tem levado a uma variedade de impactos, como por exemplo casos de contato forçado e subseqüentes epidemias, invasões de territórios indígenas pelos madeireiros e o reassentamento de alguns de seus habitantes que se sentiram ameaçados pelo projeto de gás de Camisea (Vide http://www.ecoportal.net/content/view/full/31947 pela denúncia da AIDESEP a respeito do reassentamento forçado dos Machiguenga que viviam em Shiateni)

Em 2001 os Nahua, que estavam fazendo uma campanha contra uma invasão de madeireiros exigiram que seu território fosse reconhecido em um título de propriedade de terra comunitária e fosse excluído da Reserva, já que consideravam que isso lhes ofereceria maior proteção legal. Isso apresentou um desafio maiúsculo; de que forma apoiar a legítima reivindicação dos Nahua sem minar a condição legal da Reserva e portanto os territórios de seus remanescentes habitantes.

Em 2002 Shinai Serjali, uma ONG peruana que estava ajudando os Nahua em sua luta com os madeireiros começou a consultar uma ampla variedade de instituições do estado e da sociedade civil envolvidas com a Reserva para achar soluções legais e práticas para focalizar seus problemas. Um workshop inicial em 2002 identificou vários problemas: a falta de uma legislação clara para Reservas do Estado no Peru, confusão sobre sua administração e limites, falta de consciência local sobre suas normas e limites e a ausência de um sistema eficiente de controle (o relatório completo está disponível em espanhol no site http://www.serjali.org/es/proyectos/taller/). Depois do workshop, um grupo integrado por seis ONG e federações indígenas continuou discutindo a situação e o resultado foi a formação do Comitê para a Defesa da Reserva em 2003. Seu objetivo era fortalecer a Reserva e a segurança territorial de seus habitantes e propor políticas e recomendações baseadas nas perspectivas e prioridades de seus habitantes em vez de em aquelas das instituições forâneas. O Comitê recebeu o apoio da AIDESEP, a organização nacional de povos indígenas, e está composto por Shinai Serjali, Racimos de Ungurahui, COMARU (Conselho Machiguenga do Rio Urubamba), IBC (Instituto do Bem Comum), CEDIA (Centro para o Desenvolvimento do Indígena Amazônico) e APRODEH (Associação Pró-Direitos Humanos).

O desafio principal desse projeto foi como considerar as diferentes necessidades e interesses de todos os povos indígenas que viviam dentro da Reserva. Em 2002 havia pelo menos 9 comunidades conhecidas correspondentes a 3 diferentes grupos étnicos, cada um dos quais tinha diferentes relações e atitudes com a sociedade nacional. Apenas alguns desses grupos como os Nahua estavam interagindo diretamente com pessoas ou instituições externas ou instituições, enquanto outros preferiam evitar esse contato completamente. Além disso, muitos de seus habitantes falavam pouco ou nada espanhol e tinham uma compreensão limitada ou não tinham qualquer compreensão de conceitos tais como o Estado, a lei, a propriedade, sem falar da Reserva.

Para enfrentar essas dificuldades se formaram três equipes de campo cuja tarefa foi trabalhar por períodos prolongados apenas com aquelas comunidades que já tinham tido contato com estranhos. Todas as equipes de campo estavam compostas por pessoas que tinham experiência de campo prévia com essas comunidades, que falavam sua língua e que tinham ganhado sua confiança. Durante 12 meses de trabalho de campo as equipes utilizaram esboços de mapas e equipamento GPS (sistema de posicionamento global) para ajudar às comunidades a fazer mapas geo-referenciados de seus territórios, que ilustrassem sua importância cultural, histórica e prática bem como os assuntos que ameaçavam sua integridade. Os mapas também ilustravam seu conhecimento sobre a localização e os movimentos dos povos que viviam na Reserva que estavam evitando qualquer contato com os estranhos.

Além disso, as equipes de campo escutaram as principais preocupações e prioridades dessas comunidades, que incluíam invasões de madeireiros, transmissão de doenças, exploração por professores de escola e o impacto do projeto de gás de Camisea. Em muitos casos as equipes introduziram o conceito da Reserva, discutiram como foi desenhada para proteger seus direitos e em que medida estava trabalhando. Uma quarta equipe de campo trabalhou por três meses com as chamadas comunidades Machiguenga nos limites da Reserva, ajudando-as a mapear seu uso dos recursos e território dentro da Reserva e suas atitudes e conhecimento a respeito dela e de seus habitantes para garantir que seus direitos também fossem respeitados no desenvolvimento de quaisquer propostas. As equipes trabalharam com os Nahua, os Nanti do rio Camisea, os Machiguenga do rio Paquiria e as comunidades Machiguenga nos limites da Reserva.

Sobre a base dessas preocupações, um advogado especializado em direitos indígenas começou a desenvolver uma proposta legal que refletisse melhor os problemas da Reserva e as preocupações de seus habitantes. A proposta está baseada nos mais altos padrões de direitos humanos e indígenas em nível internacional e se aplica às cinco Reservas do Estado no Peru. A proposta estabelece intangibilidade para as Reservas e proíbe qualquer indústria extrativa dentro delas, bem como os esforços para contatar povos em isolamento voluntário. Estabelece definições de povos indígenas em isolamento voluntário e de contato inicial, planos de contingência em caso de contato não desejado ou de emergência médica, os meios para criar novas Reservas para pessoas que atualmente vivem fora delas e severas sanções para pessoas ou instituições que violam a lei. O esboço da proposta foi apresentado à AIDESEP (Associação Inter-étnica de Desenvolvimento da Selva Peruana) e a suas bases regionais (FENEMAD, ORAU, ORAI e COMARU) que estavam desenvolvendo uma proposta similar. As duas propostas se fusionaram e modificaram em consulta com todas as federações regionais e locais da AIDESEP.

Um dos objetivos do Comitê foi também o desenvolvimento de recomendações que pudessem ser aplicadas aos problemas específicos da Reserva Kugapakori/Nahua. Com esse fim, os principais problemas e prioridades dos habitantes da Reserva foram colocados em circulação entre um grupo maior de pessoas, incluindo representantes indígenas locais, membros de ONGs que trabalham na área ou em regiões vizinhas e representantes de instituições do Estado responsáveis dos assuntos florestais e relacionados com os povos indígenas e os direitos humanos. O grupo trabalhou para desenvolver recomendações específicas para ocupar-se de uma variedade de problemas complexos como o corte ilegal de árvores, as atividades do projeto de gás de Camisea, a transmissão de doenças estranhas a pessoas com resistência natural mínima ou sem qualquer resistência, a incursão de colonizadores e os esforços de alguns missionários para entrar em contato à força com alguns desses povos que evitam qualquer contato.

Em novembro de 2004 os resultados do trabalho de campo e a proposta legal serão apresentados aos principais representantes do Governo peruano. A apresentação é o primeiro passo no processo de sua aceitação e ratificação pelo Estado. Espera-se que os principais ministros do governo e outros representantes aceitem as propostas como uma iniciativa informada e completa e se comprometam a promover sua implementação tanto nas leis quanto efetivamente.

Por: Conrad Feather, Shinai Serjali, e-mail: conrad@serjali.org. Por mais informação sobre o trabalho para defender a Reserva Nahua/Kugapakori e seus povos indígenas, visite o site http://www.serjali.org ou envie uma mensagem para o e-mail serjali@serjali.org.