Brasil: os índios isolados e a política para a sua defesa e proteção

Imagem
WRM default image

Seria importante, em primeiro lugar, definir claramente do que estamos falando quando nos referimos a povos ou populações em “isolamento voluntário”. Este termo e seus assemelhados (tais como “arredios”, “isolados”, “autônomos”) procuram descrever “uma situação ou um contexto histórico”. O pano de fundo ou a base comum de todo eles é que buscam definir povos (idealmente) ou populações (o que talvez esteja mais perto da realidade) que têm pouco ou nenhum contato sistemático com os agentes ocidentais (via de regra, empresas econômicas ou missionárias). Ou seja, que não “dependen” do nosso sistema econômico para sobreviverem – e muito menos do simbólico. Tal “autonomia” em geral é originada pelo contexto geográfico – e são muitos os povos e populações humanas que poderiam se encaixar na definição de “isolados” em função de determinado nicho geográfico inacessível aos contatos sistemáticos (populações andinas, do pólo norte, do Kalahari, dos desertos africanos ou asiáticos, das montanhas da Nova-Guiné etc.). Mas tais povos e populações mantêm contato residual com a economia (e sistema ideológico) dominante e continuam mantendo padrões independentes de sobrevivência em relação à economia dominante em função das resistências sociais e culturais internas que oferecem – voluntariamente. Porém o que temos visto é tal autonomia perdura até quando o nicho que ocupam não for objeto de uma valorização (capitalista) dos recursos naturais (ou simbólicos, se porventura se tratar de territórios “estratégicos” às potencias ocidentais).

Pois bem: este contexto não se aplica aos povos ou populações indígenas “em isolamento” na Amazônia. No contexto amazônico, quando definimos povos e populações indígenas “isoladas”, estamos nos referindo a povos e populações os mais próximos do estado em que Colombo os teria encontrado. Não se trata, pois, de um isolamento geográfico apenas, mas principalmente histórico. E essa a sua diferença crucial em relação aos demais povos e populações “em isolamento voluntário” no planeta. É certo que, ao longo deste tempo (500 anos!), buscaram ou se refugiaram em regiões isoladas, ou melhor, não pretendidas pela sanha mercantilista (ou missionária) das nossas “frentes de expansão”. Na Amazônia (brasileira, sobretudo; mas também na boliviana, peruana, colombiana, venezuelana, equatoriana e guianense) estimamos que existam ainda dezenas de povos indígenas vivendo quase do mesmo modo como viviam a quinhentos, seiscentos ou mil anos atrás: vestidos apenas com seus adornos de penas ou estojos penianos, sobrevivendo da caça, da pesca, da coleta e da pequena agricultura feita com machados de pedra e fogo, sem doenças viróticas e em um ambiente de plena abundância. Podem até conhecer algum dos nossos instrumentos (instrumentos de ferro, garrafas de vidro, vasilhas plásticas etc.) que lhes caem às mãos por mero acaso ou fruto de aproximações anteriores que perceberam lhes serem altamente desastrosas.

Permanecem neste estado, é importante enfatizar, porque, de um lado, as condições no entorno imediato do seu habitat o permitem e também porque, de outro lado, estes povos produzem e marcam agressivamente uma distância (uma fronteira) em relação a nós ou outros povos indígenas já contatados, buscando, pela agressão e o conflito aberto (mas desproporcional), manter suas condições de existência. Porém, nem todos o têm conseguido manter esta distância.

É fato hoje que a maioria dos povos isolados na Amazônia está vivendo uma situação extremamente grave em função do avanço das frentes predadoras (madeireiras e mineradoras) sobre as últimas áreas ainda intocadas da região. Acossados e atacados por estas frentes de expansão predatórias (as quais recorrem muitas vezes a indígenas já contatados e seus inimigos no passado), começam a lançar mão de estratégias de fuga, diminuindo os sinais de passagem ou alterando seu padrão de subsistência – não abrindo roçados visíveis por avião, alterando a forma das suas moradias para camuflá-las na vegetação, mudando-se de local com maior freqüência e dispersando sua população. Nestas circunstâncias, muitos destes povos – se não maioria – deixam de realizar seus rituais, alteram radicalmente suas rotinas de subsistência e até mesmo de procriação, evitando a concepção ou mesmo abortando seus filhos e filhas.

Na legislação brasileira (Lei nº 6001 de 19/12/73) a denominação “índios isolados” aparece como um conceito legal que define as populações humanas de cultura pré-colombiana que mantiveram-se geográfica e sócio-culturalmente distanciadas da população ocidental que constituiu posteriormente a maioria populacional dos país. Este isolamento se dá em tal grau que se desconhece sua composição demográfica, registrando-se apenas algumas evidências de sua existência e nenhum ou parcos indícios de sua cultura material, costumes e línguas.

As especificidades físicas, étnicas, lingüísticas, culturais e cosmológicas dos povos indígenas isolados são um inestimável patrimônio humano, cuja diversidade e existência são a cada dia ameaçadas por ações de segmentos da sociedade nacional que visam unicamente à exploração irracional e o enriquecimento às custas das populações nativas e da degradação total dos recursos naturais e da biodiversidade concentrada em seus territórios.

A freqüência dos registros de índios isolados concentra-se em nichos territoriais remotos, muitos destes em faixas das fronteiras dos países amazônicos - o que requer esforços multinacionais. Na América do Sul, apenas o Brasil, conta com uma coordenação específica para questão dos isolados, a Coordenação Geral de Índios Isolados – CGII ligado ao órgão indigenista oficial do Governo brasileiro, a FUNAI. Este departamento mantém registros de 38 informações sobre povos isolados no território brasileiro. A resistência empreendida por estes povos traduz-se também pela proteção de extensas áreas de ecossistemas amazônicos, visto que sua reprodução física e cultural é tradicionalmente viabilizada por modos de usufruto dos recursos naturais plenamente compatíveis com a conservação e resguardo dos ecossistemas nos quais habitam.

Em vários países da América do Sul, a presença de índios isolados também é confirmada. Na Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela registram-se a existência de povos indígenas nas mesmas condições de isolamento e clandestinidade social, resistindo, freqüentemente com violência, à penetração de seus domínios. Em qualquer desses países o quadro é sempre o mesmo: forçados a migrações, espoliados de seus territórios tradicionais, vitimados por toda sorte de tragédias durante os sucessivos ciclos de expansão e apropriação das fronteiras econômicas e sociais empreendidas pelas sociedades nacionais no território amazônico.

A ação colonizadora e ocupação do território amazônico têm sido secularmente ancorados em atividades predatórias, extrativismo desordenado e exploração do trabalho escravo, propiciando drástica depopulação e extinção de inúmeros povos ameríndios. Uma cota desconhecida de povos indígenas subsiste na condição de “isolados”, empreendendo uma renhida e surda luta para sobreviverem à ação exterminadora da sociedade envolvente. O desconhecimento público de dados concretos que efetivem sua “visibilidade social” diante da sociedade civil, e a absoluta ausência de legislação específica que garantam a proteção, salvaguarda e suporte do Estado a estes povos os tem os mantido, e a seus remanescentes, permanentemente expostos à extinção, bem como propiciado a contínua dilapidação e degradação ambiental de seu habitat.

O ritmo de extinção dos povos isolados, aferido na etnografia brasileira, produzidos pelos poucos pesquisadores que se dedicaram à questão, por si só expressam a devastação genocida desta saga. O antropólogo Darcy Ribeiro, que em sua obra essencial “Os Índios e a Civilização” (editora Cia das Letras, 1996) exemplifica a dramática depopulação ocorrida entre 1900 e 1957: neste período de 57 anos, desapareceram 87 etnias que se mantinham isoladas. Embora novos povos isolados tenham sido “descobertos” nas décadas mais recentes, a proporção de povos extintos e em contato permanente com a sociedade nacional é bem maior, numa amarga estatística que é tarefa ainda por se efetivar. As estatísticas e quadros demográficos jamais poderão expressar o conteúdo humano e cultural de tanta vida que se extinguiu, e que continua a definhar perante a indiferença da sociedade civil e aquiescência de governantes.

Os índios isolados se apresentam, pois, como os últimos e mais desfavorecidos dos párias, sem voz, sem presença física, sem nenhum reconhecimento social ou mesmo humano, lembrados apenas e esporadicamente por vozes isoladas de segmentos mais esclarecidos da sociedade. Este quadro dramático apenas reafirma a imensa e urgente responsabilidade social que cabe aos Estados Nacionais neste processo, bem como aos diversos setores da sociedade comprometidos com a democracia, os direitos humanos, a conservação ambiental e o patrimônio cultural e imaterial da humanidade. É dever do Estado envidar esforços direcionados e substanciais na proteção aos índios isolados, indo ao encontro de suas necessidades essenciais e implementando políticas públicas e medidas legais que reiterem seus direitos constitucionais e étnicos, bem como de proteção específica e diferenciada.

Por: Gilberto Azanha, e-mail: gilberto.azanha@trabalhoindigenista.org.br (*) e Sydney Possuelo (**)
* Gilberto Azanha é antropólogo e coordenador da ONG Centro de Trabalho Indigenista –CTI que mantém projetos de proteção a povos isolados na Amazônia brasileira em parceria com a CGII.
** Sydney Possuelo é sertanista e criador e chefe da Coordenação de Índios Isolados (CGII) da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão do Governo brasileiro responsável pela execução da política de proteção aos povos indígenas.