A evolução do papel: da necessidade à cobiça

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Há muito tempo, a necessidade de nossos primeiros antepassados de transmitir palavras e imagens foi plasmada em paredes de pedra, tábuas de argila, tábuas recobertas de cera, peles de animais e outros meios. Depois, aproximadamente 3000 anos AC, os egípcios começaram a escrever em papiros. Os hastes do papiro eram laminados em tiras (como as lascas de bambu na China). Atribui-se a Ts’ai Lun, um funcionário chinês a invenção do primeiro papel real aproximadamente em 105 DC, transformando amoreiras, redes de pesca de cânhamo e trapos num material que permitia à caligrafia numa superfície lisa. Os rolos de pergaminho continuaram sendo a unidade de armazenagem de informação standard até o aparecimento do códex ou caderno de folhas dobráveis no século quarto DC.

As técnicas de fabrico de papel foram transferidas para o Oeste quando um exército árabe venceu às forças chinesas em 751 DC e capturou entre seus prisioneiros de guerra uns poucos fabricantes de papel que foram estabelecidos depois para exercer seu ofício em Samarkand. Então a capacidade de fazer papel espalhou-se devagar da Ásia Islâmica para a Europa. A Idade Média na Europa foi uma época de analfabetismo, finalmente interrompida pela invenção no século XV do tipo móvel por Gutenberg. A publicação da Bíblia de Gutenberg em 1455 e o aumento subseqüente de livros produzidos em massa facilitaram a ampla disseminação de idéias e informação. Isso provocou o aumento na demanda de papel. Naquela época, os trapos proporcionavam a principal fonte de fibra.

No século XIX, os proprietários de fábricas francesas e inglesas, lutando para superar o poder que tinham os artesãos do papel em virtude de seu conhecimento especializado começaram a desenvolver, com a ajuda das novas indústrias de maquinário da revolução industrial, máquinas de papel com a técnica para fazer papel centralizada em mãos capitalistas. O surgimento de produção de pasta originada em árvores proporcionou uma fonte de fibras mais barata e mais disponível (contudo, a rejeição do papel baseado em madeira foi tão intenso entre os moradores locais, que as entregas da polpa de papel tinham que ser realizadas à noite). A descoberta do cloro elementar em 1774 e a invenção da máquina de fabricação de papel de forma continua de Fourdrinier patenteada em 1807 eventualmente permitiu aos fabricantes extrair quimicamente polpa e branquear as fibras de madeira e aumentar drasticamente a produção criando rolos, em vez de lâminas individuais.

Na presente fase, o paradigma baseado em árvores, globalmente orientado, veio a dominar a produção de papel do século XX enquanto os processos de fabricação industriais e os métodos florestais se expandiam. O uso global do papel tem crescido 423% de 1961 até 2002.

Em meados da década de 80, o impacto ambiental da fabricação de papel baseada em árvores foi submetida a intenso escrutínio público. Os cientistas perceberam que o cloro elementar, o principal químico utilizado para separar e branquear as fibras da madeira, combinado com a dioxina produzida pela lignina, era um dos cancerígenos mais potentes e perturbadores de hormônios (depois da incineração, as fábricas de celulose e papel são a segunda maior fonte de dioxina e a maior fonte de poluição da água pela dioxina). O papel virou associado com problemas de saúde pública e o envenenamento dos peixes.

A indústria internacional respondeu investindo em tecnologias que poderiam levar à redução da poluição. A substituição do dióxido de cloro (processo ECF) pelo cloro gás tem reduzido significativamente, mas não tem eliminado a poluição por dioxina. Além disso, implementaram-se tecnologias totalmente livres de cloro (TCF) –apesar de que sua porção do mercado é marginal. A pasta ECF domina o mercado mundial de pasta branqueada quimicamente com mais de dois terços da porção mundial do mercado (75%), seguida pelo cloro gás elementar tradicional com aproximadamente 20% enquanto apenas pouco mais de 5% é branqueado pelo processo TCF (cifras de 2002).

No entanto, novas evidências mostram que os problemas persistem em todas as tecnologias. Aparentemente não há correlação entre os AOX (compostos halogenados adsorvíveis), os níveis de despejo e os impactos ambientais em estudos de respostas específicas de peixes. Além disso, outras observações têm documentado uma série de lesões numa amostra de peixes adjacentes a uma fábrica que usa hidrossulfito de sódio como agente branqueador, sem utilizar químicos baseados em cloro. Também constatou-se que as concentrações de metais presentes em águas residuais TCF são mais altas que em outros efluentes de branqueamento. Sobretudo, esses estudos demonstraram que enquanto as melhorias ambientais poderiam ser atingidas por mudanças de processo -e a eliminação de químicos baseados em cloro era um fator chave nessas melhorias- os efluentes de todos os processos eram tóxicos em algum grau. Além disso, cada etapa da produção do papel, desde o corte das árvores até o despejo do papel em depósitos de resíduos, ajudam significativamente aos gases de efeito estufa da atmosfera. Todos esses riscos estão sendo magnificados pela crescente escala das novas fábricas.

Um quinto de toda a madeira colhida no mundo acaba transformando-se em papel e leva 2 a 3,5 toneladas de árvores para fazer uma tonelada de papel. Por outro lado, a indústria da celulose e do papel é a quinta maior consumidora de energia no mundo. Além disso, em países do Norte, o papel é responsável de quase 40% de todos os resíduos sólidos municipais. Com um crescimento global anual previsto de 2,5%, a indústria e seus impactos negativos poderiam duplicar-se para o ano 2025.

Todos esses dados preocupantes deveriam fazer com que considerássemos a razão última para expor o ambiente e as pessoas a esses riscos. É o custo inevitável que a sociedade humana deve pagar em favor do alfabetismo, da informação e da cultura? Ou o consumo atual de papel está vinculado ao padrão descartável da vida moderna?

Em termos de usos do papel, as embalagens hoje ultrapassam os graus de comunicação. Apesar de que o papel está tradicionalmente identificado com a leitura e a escrita, as comunicações têm sido substituídas agora pelas embalagens como a única maior categoria de uso do papel. A real expansão nas embalagens de papel tem aparecido desde a década de 50, com a difusão dos supermercados e alimentos embalados (apesar de que em alguns casos está declinando tanto em decorrência de reduções gerais em embalagens quanto em decorrência da substituição por outros materiais, como o plástico). A revolução da informação eletrônica tem multiplicado em vez de substituir o uso do papel, e um número de outros fatores, tais como a publicidade, a venda no varejo de alimentos também influenciam padrões específicos do consumo de papel, principalmente a demanda de papel de jornal e papel de embalagem. A esmagadora maioria do papel é utilizada como insumo para outros setores de fabricação: a demanda é portanto filtrada através de outras indústrias e é raramente uma resposta direta pelos consumidores finais. Nos Estados Unidos, apenas 15% da produção de papel é comprada diretamente pelos consumidores finais.

Do ponto de vista do consumo, a tendência está de acordo com as graves desigualdades que levam em consideração o padrão de acumulação e centralização da globalização do mercado e um abismo separa o consumo de papel no Norte e no Sul: o norte-americano médio consome 27 vezes a quantia de papel utilizada cada ano pelo habitante comum do Sul; muitos países africanos consumem atualmente menos papel per capita que em 1975. Os Estados Unidos são de longe o maior produtor e consumidor de papel. O consumo de papel per capita nos Estados Unidos é mais de seis vezes maior que a média mundial e aproximadamente 25% maior que em Japão, o segundo maior consumidor de papel per capita do mundo.

Um norte-americano médio consome 331 kg de papel ao ano e um europeu consome 196 kg por pessoa, enquanto na Índia o consumo anual é 3,8 kg e na maior parte da África menos de 1 kg (cifras de 1999). Estima-se que o trabalhador administrativo médio dos Estados Unidos, usa uma folha de papel cada 12 minutos e joga fora 100-200 libras de papel cada ano e em termos gerais a introdução do email tem causado um aumento de 40% no consumo de papel.

O consumismo e a pobreza convivem num mundo desequilibrado onde não há vontade política para frear o esbanjador consumo exagerado de algumas pessoas e para melhorar o standard de vida daqueles que mais o necessitam. O atual consumo exagerado de papel está baseado em penhorar o futuro da humanidade, e principalmente para beneficiar umas poucas corporações que controlam o mercado global através da manipulação dos mercados, acordos de cartel, fixação de preços e outras práticas similares. O tamanho das grandes empresas do papel –as cifras de vendas de somente a International Paper ultrapassam o Produto Interno Bruto de mais de 75 países- faz com que elas influenciem os atores políticos e econômicos, cujas operações orientadas ao lucro são principalmente responsáveis pela atual crise ambiental, social e econômica. Os grandes supermercados e shopping centers são as novas catedrais da moderna sociedade de consumo que alberga apenas uma elite –28% da população mundial, principalmente de países do Norte, cujos hábitos de consumo têm levado a uma situação insustentável em virtude do grande consumo de água, energia, madeira, minerais, solo e outros recursos e à perda de biodiversidade, poluição, desmatamento e à mudança climática.

Artigo baseado em informação de: “Guide to Tree-Free, Recycled and Certified Papers”, http://www.watershedmedia.org/paper/paper-aconcise.html ; “Towards Zero-Effluent Pulp and Paper Production: The Pivotal Role of Totally Chlorine Free Bleaching”, http://archive.greenpeace.org/toxics/reports/tcf/tcf.html#BIOLOGICAL IMPACTS ; “Rethinking Paper Consumption”, Nick Robins e Sarah Roberts, International Institute for Environment and Development (IIED), http://www.iied.org/smg/pubs/rethink3.html ; “Paper Cuts: Recovering the Paper Landscape”, Janet N. Abramovitz e Ashley T. Mattoon, World Watch Paper 149, Dezembro 1999 ; “Trends in World Bleached Chemical Pulp Production: 1990-2002”, http://www.aet.org/reports/market/2002_trends.pdf ; “La sociedad de consumo”, José Santamaría, World Watch, http://www.nodo50.org/worldwatch , e-mail: worldwatch@nodo50.org , enviado pelo autor; “The Pulp Pollution Primer”, Delores Broten e Jay Ritchlin, Reach For Unbleached! Foundation, http://www.rfu.org/PulpPrimer.pdf ; “Paper Consumption Statistics”, http://www.njheps.org/drewpp.ppt