O mundo está perdendo as suas florestas. No planeta todo, são muitas as pessoas sofrendo pelos processos destrutivos que as privam dos recursos naturais que têm sido a base do seu sustento. O WRM, bem como outras muitas organizações no mundo todo, há muito tempo vem denunciando essa situação e apoiando os povos que lutam em defesa das suas florestas e seus direitos.
A história da apropriação e do controle das florestas, primeiro pelas potências colonialistas, e depois, pelos estados nacionais, sob a bandeira do "ordenamento científico das florestas" ou silvicultura, tem sido uma característica comum do manejo tecnocrata centralizado, que tem se incrementado ao longo do século passado como conseqüência do avanço do moderno estado-nação, o poder da tecnologia e a economia mundial, resultando em última instância na venda maciça das florestas em benefício dos interesses da indústria florestal. A silvicultura, tal como foi imposta ao Sul pelo Norte, primeiro através do colonialismo e depois através dos organismos para o desenvolvimento, e a Organização Mundial para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO), tem falhas graves. Em primeiro lugar, por alocar as terras florestais (territórios das comunidades locais) ao Estado, e em segundo lugar porque depois entrega os direitos da exploração madeireira a grupos privados. O resultado é uma aliança non-sancta entre esses protagonistas poderosos, cujos interesses visam excluir as comunidades das florestas e evitar o estabelecimento de restrições reais à exploração, que poderiam limitar os lucros gerados em nome da sustentabilidade.
No caso dos países empobrecidos do Sul, a venda da madeira tem se utilizado para pagar uma dívida que cresce em espiral. Essa dívida gera-se a partir dos laços de dependência que cultivam os principais países do Norte, atuando em representação das grandes empresas e defendendo suas vantagens, apoiados pela intermediação das instituições financeiras internacionais (FMI, Banco Mundial, etc.), ao mesmo tempo em que geram quantiosas riquezas pessoais para uns poucos magnatas da indústria madeireira. Esse processo originou uma série de fatores que exercem uma enorme pressão sobre as florestas e os povos que as habitam e delas dependem. Esses povos não têm acesso aos recursos das florestas em igualdade de condições. As condições injustas do comércio internacional têm determinado a depreciação dos bens básicos (os principais produtos de exportação dos países do Sul) deslanchando uma corrida sem fim pelo aumento da produtividade a expensas dos ecossistemas. Nesse contexto, as nações poderosas impuseram aos países empobrecidos, embora ricos em natureza, os "programas de desenvolvimento" (juntamente com a infra-estrutura que os acompanha). Dessa forma, as empresas se beneficiam duplamente: por um lado, com o acesso fácil aos recursos naturais e, por outro, com os altos juros dos empréstimos concedidos para levar adiante os programas que consideram a natureza como um conjunto de mercadorias (minerais, petróleo, recursos genéticos, madeira, terra para a expansão agrícola) a serem exploradas para obter lucros no curto prazo. Esse processo, descrito graficamente pelo escritor Eduardo Galeano em sua obra As veias abertas da América Latina, aplica-se da mesma forma aos países do Sul no mundo todo.
O resultado tem sido a degradação e a destruição das florestas, o deslocamento dos povos, a perda das formas de sustento e das culturas regionais. Diante dessa realidade, atualmente existe um interesse crescente na procura de novas formas para preservar o que resta das florestas no mundo.
O WRM tem manifestado a necessidade urgente de uma mudança na relação atual com as florestas. Existem dois pontos de vista contrapostos: um considera a floresta como terra a ser explorada, explotada, despejada e ocupada, para ser semeada e cultivada de acordo com programas comerciais de monoculturas em grande escala; o outro vê a floresta como um ecossistema a ser utilizado em suas múltiplas dimensões, pelas pessoas e para as pessoas, sem quebrar o necessário equilíbrio existente entre toda a ampla gama dos seus componentes.
Fica claro que somente o segundo ponto de vista pode garantir a conservação das florestas, e fica igualmente claro que os Povos Indígenas e as outras comunidades tradicionais e locais são os únicos que podem e desejam pô-lo em prática. Essas comunidades têm uma longa tradição no uso sustentável das florestas através de regimes de propriedade comunitária, nos quais o acesso à floresta e o uso dos seus recursos estão regulados pela dependência recíproca, os valores compartilhados de cooperação e associação e as leis tradicionais, com a clara consciência de estarem fazendo uso de uma floresta emprestada pelos seus filhos.
Estamos cientes de que muitas experiências se desmantelaram, que muito conhecimento se perdeu e que, em vários lugares, se esgotaram os recursos naturais. Numerosas comunidades têm sofrido pressões externas que as forçaram a abandonar as suas terras, destruíram suas formas de sustento ou ficaram "contaminadas" com novas modas e tendências de consumo; e isso tudo, em última instância, as separou da sua rica cultura. No entanto, antes que seja tarde demais, a solução está ao alcance das nossas mãos. Na realidade, tem estado ali o tempo todo. Os políticos têm a oportunidade de provar a sua boa vontade cumprindo as promessas de sustentabilidade por eles proclamada; é simplesmente uma questão de prioridades: ficar ao serviço dos interesses dos povos (por cima dos interesses transnacionais), apoiar e promover os antigos sistemas de manejo comunitário que, durante séculos, permitiram às comunidades que dependem das florestas realizar um manejo florestal sustentável, para viver delas e ao mesmo tempo serem seus custódios.
A floresta: lar generoso e pródigo
Para os habitantes da floresta e para aqueles que dependem dela, a floresta é seu grande armazém, aquele que os provê de alimentos (talos, folhas, flores, frutos, nozes, cogumelos, minhocas, formigas, ovos de aves, animais pequenos e peixes). É ali que eles acham também materiais de construção e remédios, bem como lenha e matérias-primas, tais como bambu, juncos, folhas, pastos, borracha, resina, cera e tinturas para a fabricação de sogas, mantas e cestos para uso próprio, bem com para troca ou venda nos povoados próximos. Por outro lado, a floresta é um grande fornecedor de água; é a bacia hídrica que permite o armazenamento e a distribuição equilibrada de água .
Por último, porém não menos importante, a floresta é para eles mais do que um simples fornecedor de produtos. Ela é também o ponto de encontro para suas celebrações sociais e culturais, o local onde eles realizam as assembléias para tomar decisões e onde sepultam seus mortos. Na floresta eles atingem uma profunda interconexão moral e espiritual pela qual conseguem se reconhecer a si próprios como parte da floresta.
Uma visão holística da floresta
A estreita ligação com a floresta está imbuída nas comunidades das florestas e nas que delas dependem. Essas comunidades têm praticado sempre uma "abordagem ecossistêmica" do manejo florestal. A tendência atual de exploração das florestas, com sua abordagem reducionista, tem separado as coisas e tem alterado o equilíbrio, provocando a crise atual das florestas. Por esse motivo, uma visão holística é um elemento necessário para uma experiência de manejo florestal comunitário. Ela tem gerado um sistema de conhecimento amplo e profundo com seus conceitos próprios, definições e práticas, permitindo o uso sustentável das florestas por parte das comunidades das florestas e das que delas dependem, ao longo de vários séculos. Isso é válido ainda hoje, quando podemos encontrar exemplos de comunidades que conseguem conservar, e inclusive às vezes restaurar, regiões florestais degradadas das quais dependem, apesar das circunstâncias adversas.
A floresta é a base de sustento das comunidades das florestas e das que delas dependem; por esse motivo, para essas comunidades, é uma questão de sobrevivência se voltar para o manejo florestal, de forma a garantir a perpetuidade da floresta. Caso contrário, as comunidades estariam colocando em risco seu próprio futuro. Porém, quando ficam enfrentadas a forças externas que distorcem o meio ambiente, elas são obrigadas a procurar outros meios de sobrevivência que geralmente implicam um manejo não sustentável dos escassos recursos naturais deixados para trás pelas empresas florestais e outros grupos comerciais voltados para o mercado que têm usurpado a mãe terra das comunidades. A unidade foi quebrada desde fora, mas freqüentemente acontece que as comunidades das florestas, e as que delas dependem, acabam sendo assinaladas como culpáveis, mesmo sendo o elo mais fraco da cadeia.
Garantir a posse para o manejo comunitário
Subjacente à forma de vida das comunidades das florestas e das que delas dependem, acha-se o conceito de propriedade comum da floresta para o seu uso, manejo e monitoramento. A comunidade não "possui" a floresta; antes, ela é seu custódio, tendo, em conseqüência, direitos e obrigações para com ela.
No entanto, para que as comunidades possam cumprir adequadamente seu papel de custódios, devem ter assegurada a posse dos recursos da floresta, e o seu uso deve estar garantido através de órgãos com poder de governo, escolhidos por cada comunidade para serem verdadeiramente representativos. Os estudos de caso confirmam que a falta de garantia dos direitos sobre a terra e direitos de uso das comunidades é causa fundamental do enfraquecimento dos sistemas locais de manejo florestal. Pelo contrário, num contexto de conflito, a garantia dos direitos sobre a terra, e dos direitos de uso, é a base da conservação das florestas e do bem-estar dos habitantes locais que delas dependem.
Autonomia e soberania para o poder de decisão em escala local
O poder de decisão das comunidades baseia-se em suas próprias instituições representativas, que representam legitimamente seus interesses e que adotam diferentes formas conforme a cultura local, o meio ambiente natural, e a organização de cada comunidade. Toda vez que isso foi modificado para transferir o poder ao governo central (nacional, estadual o provincial), o resultado foi a distorção da integridade do ecossistema, com a conseqüente diminuição da sustentabilidade dos recursos e o empobrecimento da comunidade.
Não existe um modelo único de manejo florestal comunitário, embora todos apresentem como característica comum a necessária autonomia e soberania de suas autoridades legítimas, para tomar as decisões pertinentes sobre o controle, uso e manejo da base de recursos da comunidade, visando satisfazer as necessidades dos seus membros.
Desafios e expectativas
O manejo comunitário está ressurgindo como uma alternativa válida ao atual modelo de uso industrial da floresta. Um grande número de pessoas e organizações já estão trabalhando com vistas a realizar e consolidar experiências bem-sucedidas, segundo as necessidades, os antecedentes e a história do lugar.
Contudo, será necessário enfrentar numerosos desafios, sendo necessário se questionar a respeito de vários assuntos. É possível que casos isolados de manejo florestal comunitário possam sobreviver num contexto onde aqueles que marcam o rumo são atores tão poderosos quanto as trasnacionais, governos e instituições internacionais responsáveis pela globalização de um modelo econômico de desregulamentação e abertura de mercados? Estaremos suficientemente alertas como para reconhecer a diferença entre casos legítimos e aqueles que simplesmente são uma co-opção do modelo prevalente? Como preservar o promissório modelo de manejo florestal comunitário de interesses espúrios, tanto internos quanto externos?
A maior parte das comunidades da floresta, e aquelas que dela dependem, não vivem mais nas condições de ecossistemas equilibrados que tinham conseguido manter de tempos atrás. O desmatamento em grande escala e os processos de degradação das florestas, o esgotamento de seus recursos, com a conseguinte escassez para as comunidades que as cercam, têm produzido mudanças na forma de vida. Ao mesmo tempo, essas mudanças trouxeram novas necessidades e fizeram surgir novos valores que podem implicar a perda do conhecimento tradicional e a ruptura dos antigos laços e crenças que desde sempre foram os pilares da coesão social e da continuidade cultural.
Por outro lado, há uma série de questões que devem ser abordadas pelas comunidades para garantir sua coesão interna e sua fortaleza. Entre elas, devemos mencionar a participação da mulher, que tem necessidades, perspectivas e funções específicas. Sua participação ativa na tomada de decisões e a distribuição eqüitativa dos benefícios entre homens e mulheres são essenciais para garantir a sustentabilidade no longo prazo do manejo florestal comunitário. Igualmente importante é a necessidade de gerar as condições básicas para promover a participação ativa dos jovens, que representam o futuro da comunidade.
Unindo esforços
Aqueles de nós comprometidos com o apóio às comunidades das florestas e às que delas dependem, em sua luta por manter e recuperar suas florestas, os que apoiamos e promovemos que elas recuperem o controle do manejo florestal, devemos ter presente que existem muitos obstáculos (tanto internos quanto externos, nacionais e internacionais) a serem vencidos. É necessário ressaltar a importância de somar forças e esforços e compartilhar experiências. Muitas organizações locais, nacionais e internacionais (entre elas o WRM) têm lutado e têm feito campanha durante muitos anos para conseguir uma mudança nessa direção. Em maio do presente ano, várias organizações decidiram unir esforços no Caucus para o Manejo Florestal Comunitário, visando influenciar os processos mundiais e nacionais para criar condições que permitam às comunidades locais o manejo das suas próprias florestas. Esse é um primeiro passo na direção certa.
Hoje, resulta evidente que o modelo industrial leva à destruição da floresta, enquanto o manejo comunitário permite o seu uso sustentável. Os governos têm acordado (pelo menos no papel) que é necessário conservar as florestas para preservar a saúde do Planeta. Agora é chegado o momento de fazê-los cumprir os compromissos assumidos, e a sociedade civil organizada (do nível local ao internacional) é protagonista fundamental para garantir que fatos e discursos cantem em uníssono. Nossa mensagem deve ser forte e clara: a responsabilidade pelo manejo florestal deve voltar às mãos das comunidades das florestas e das que delas dependem. Somente então, as florestas terão a possibilidade de sobreviver.