O cercamento de terras, florestas e água por empresas privadas e ou por Estados não é um fenômeno novo. Muito do que cresce na terra, daquilo que é cultivado pelos seres humanos, que flui sobre e sob a terra, que forma paisagens e ecossistemas, que é construído na terra e que é extraído da terra tem sido mercantilizado. O que é novo é a variedade de meios, mecanismos e instrumentos pelos quais se exerce o controle político e econômico sobre a terra e a natureza, e pelos quais a terra e a riqueza baseada nela estão se transformando em produtos em novos mercados. Países com grandes economias agrárias no sul global já abriram suas fronteiras ao investimento estrangeiro direto, com muitos desses investimentos sustentados por complexos contratos de financiamento e múltiplas fontes de capital, incluindo financiadores públicos, privados e multilaterais. Muitas vezes, as populações locais afetadas por esses negócios perdem seus meios de subsistência, suas casas, culturas, identidades e o acesso a alimentos. São expulsas à força ou relocadas, e muitas vezes empurradas para o trabalho assalariado precário e mal remunerado.
A disseminação do neoliberalismo em grande parte do mundo desde a década de 1980 deu um novo ímpeto à tomada dos sistemas agrícolas e alimentares pelas empresas. A desregulamentação financeira permitiu que os mercados de commodities se expandissem rapidamente e a novas áreas, através de novos instrumentos financeiros, e também permitiu que novos atores entrassem nas arenas de investimento em terras, agricultura e alimentos. Os bancos criaram novos tipos de instrumentos financeiros que fundiram commodities agrícolas, terras, minérios e investimentos futuros em energia (2) e direcionaram grandes quantidades de capital de investimento não regulamentado à terra e à natureza. Muitos instrumentos financeiros agrícolas transformaram o próprio risco em um novo tipo de ativo, aumentando, assim, a volatilidade dos preços dascommodities e a incerteza econômica para pequenos produtores agrícolas que não tinham qualquer proteção contra esses novos riscos de mercado.
Ao longo dos últimos dez anos, atores e instrumentos financeiros, como fundos soberanos, empresas de private equity, seguradoras, fundos multimercado (hedge), bancos de investimento e outras empresas financeiras, envolveram-se com negócios de terras, florestas, minérios e água. O recente colapso do mercado financeiro gerou um redirecionamento do capital de investimento a empreendimentos de caráter especulativo em terras, alimentos e agrocombustíveis. Embora a terra, em si, seja inamovível, a financeirização permite que a riqueza que brota dela se movimente em todo o mundo na forma de instrumentos financeiros passíveis de troca, que podem ser negociados em mercados distantes. Assim, um lugar pode ser submetido a vários regimes de financeirização, por exemplo, com Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), comércio de carbono florestal e uma plantação de árvores de crescimento rápido (ver Boletins 175 e 181 do WRM).
A subversão dos direitos, regulamentação e governança
A concentração da terra e das riquezas baseadas nela é uma violação dos direitos humanos que tem amplos impactos negativos na qualidade do meio ambiente, na biodiversidade, na sociedade, na cultura, no emprego, nos meios de subsistência e na saúde. As promessas feitas pelos investidores às comunidades afetadas, de proporcionar emprego, escolas, saúde e outros serviços sociais, raramente se materializam. Os empregos são mal pagos, precários, muitas vezes em condições de trabalho inseguras, e é comum a migração por falta de opção. As populações locais têm roubada sua agência para tomar decisões sobre como usar, gerenciar e governar suas terras e seus territórios, e – como migrantes – sua capacidade de participar dos processos políticos. Aqueles que resistem às incursões em suas terras e seus territórios enfrentam ameaças de violência, intimidação, detenções arbitrárias e encarceramento, execuções extrajudiciais e desaparecimentos.
Os Estados possibilitam esses cercamentos ao implementar políticas, leis e regulamentações que favorecem mercados, e ao usar seu aparato jurídico e de segurança para reprimir e punir quem resiste. Instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial ou o Banco Asiático de Desenvolvimento, agências multilaterais, como a ONU, instituições internacionais de políticas públicas, corporações transnacionais e até mesmo algumas organizações da sociedade civil têm buscado reenquadrar a concentração de terra, água e recursos e reapresentá-la como sendo investimentos em que todos têm a ganhar. O domínio do “público” também está sendo orientado à privatização, por meio de parcerias público-privadas em que o dinheiro público é usado para financiar operações privadas no desenvolvimento de infraestruturas, fornecimento de bens e serviços essenciais, transporte, etc. Estados, corporações e instituições internacionais entram em conluio para financeirizar terras, colheitas, água, carbono, solo, minerais, metais, carvão, petróleo e energia, permitindo que os mercados financeiros penetrem mais profundamente na economia real.
O Banco Mundial tem cumprido um papel central na promoção dos mercados de terras em países do Sul, ao financiar reformas das leis de posse da terra que estabeleceram regimes de propriedade privada, facilitaram transações de terras e permitiram que indivíduos ricos e poderosos as usassem para obter ganhos financeiros e especulativos. A “Economia Verde”, formulada pelo Programa Ambiental da ONU, promove a financeirização ao propor um regime em que os ecossistemas e a biodiversidade são avaliados em termos monetários e não pelas variedades de vida que sustentam, permitindo novas fontes de onde os investidores e o capital financeiro possam extrair receita da natureza. A “Economia Verde” trata a natureza e suas funções e capacidades como “capital natural”, e tem como objetivo atribuir valores monetários à captação e ao armazenamento de carbono, à criação de zonas de captação de água e à estabilidade dos ciclos da água, à fertilidade do solo, etc. Esses valores monetários são transformados em pacotes para ser negociados em mercados internacionais e atrair investimentos e financiamento para o desenvolvimento.
Para satisfazer esses mercados de ecossistemas, os direitos que as comunidades e populações locais têm de tomar decisões sobre uso, gestão e governança das terras e das funções que as sustentam lhes são retirados e substituídos por regimes regulatórios que permitem a mercantilização e a financeirização (3). Esses regimes proporcionam condições sob as quais investidores externos podem adquirir terra e recursos associados com um verniz de responsabilidade, transparência, democracia e participação. Assim, o crescente poder dos mercados e do capital financeiro está moldando a governança da terra e dos recursos naturais de modo perigoso.
Repensando a governança
Para a maioria dos formuladores de políticas, a governança da terra e dos recursos naturais é um exercício técnico-administrativo de mapeamento, definição, classificação, zoneamento, quantificação e avaliação, que permite ao Estado controlar, alocar e obter receita a partir do acesso, da posse e dos direitos de propriedade por meio de registros, cadastros, títulos, contratos de arrendamento, impostos, etc. Embora possam parecer neutras, essas ações são exercícios de poder e autoridade que têm potencial para consolidar ou transformar as estruturas de poder das sociedades.
Para aqueles cujas vidas, meios de subsistência, culturas, sociedades e identidades são virados de cabeça para baixo por investimentos destrutivos, a concentração de terras e recursos não pode ser regulamentada, e sim deve ser interrompida incondicionalmente. O reconhecimento dos direitos de camponeses, agricultores, habitantes da floresta, pescadores, pastores, povos indígenas e outras comunidades locais à autodeterminação, a suas legítimas reivindicações a terras e ecossistemas, e seu enraizamento e respeito pela natureza são pré-requisitos para a construção de sistemas democráticos e justos de governança da terra.
Com base nos artigos “Challenging Financial Sector Backing to Land Enclosures” e “Redifining Governance; Challenging Markets”, de Shalmali Guttal.
Shalmali Guttal é Coordenador do Programa Defending the Commons, Focus on the Global South,http://focusweb.org/
(1) www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03066150.2011.559008#.VKoqp2SUdhq
(2) Um contrato de futuros é um contrato entre duas partes para comprar ou vender um ativo por um preço acordado hoje (o preço futuro) com entrega e pagamento em um momento futuro, a data de entrega. Por se tratar de uma função de um ativo subjacente, os contratos de futuros são considerados um derivativo. Os contratos são negociados em bolsas de futuros, que funcionam como mercados entre comprador e vendedor.
(3) www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03066150.2012.691879#.VLfcNicqo7D