Lei, crime e desmatamento nas zonas rurais da Tailândia

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Moradores processados por invadir o Parque Nacional de Sai Thong, na província de Chaiyaphum. O tribunal decidiu prendê-los e obrigá-los a pagar indenização ao Estado. Foto: Prachatai

Como são definidos os crimes nas florestas? Na Tailândia, quem se tornou bode expiatório dessa destruição foram as comunidades que dependem da floresta, e não o governo e as empresas que desmatam em grande escala. A política oficial de conservação passou a se concentrar na aplicação da lei contra as populações da floresta, usando violência extrema e criminalização.

   Este artigo também está disponível em tailandês: กฎหมาย อาชญากรรม และการตัดไม้ทำลายป่าในพื้นที่ชนบทของไทย

Como são definidos os crimes nas florestas? E quem os comete? Os casos a seguir dão uma ideia de como, nos últimos anos, a lei tem sido aplicada contra as comunidades tailandesas que vivem na floresta e quais foram as consequências.

Kaeng Krachan

No Parque Nacional de Kaeng Krachan, no oeste do país, autoridades queimaram as casas e apreenderam ou destruíram os pertences de membros da etnia Karen que moravam no local. As comunidades exigiram retornar aos seus territórios de origem depois que as condições de vida nas novas casas que receberam se revelaram insuportáveis.

Kaeng Krachan é uma grande floresta ao longo da fronteira com a Birmânia, e é o lar das comunidades indígenas Karen há 100 anos. Em 2011, o governo tailandês propôs que a área se tornasse Patrimônio Mundial da UNESCO, embora o pedido não tenha sido aprovado. Desde 2011, a intimidação e a violação dos direitos humanos dos moradores têm sido frequentes, culminando na expulsão de 98 famílias Karen do parque.

Khaw-Ee Meemi, avô, então com 100 anos, e um dos despejados que viram suas casas ser queimadas, depôs em 2012, na ação movida em um tribunal administrativo, da qual ele era um dos autores. Ele disse: “Quando eu abri meus olhos pela primeira vez, como recém-nascido, lá estava a floresta na minha frente. Foi lá que eu bebi minha primeira gota de leite”. Khaw-Ee nasceu em 1911, 30 anos antes da promulgação da primeira lei florestal na Tailândia e 50 anos antes da primeira lei de parques nacionais.

Pawlajii (“Billy”) Rakjongjaroen, neto de Khaw-Ee, que dava continuidade à luta pelos direitos dos Karen em Kaeng Krachan, desapareceu em 2014. Cinco anos depois, o Departamento de Investigações Especiais descobriu, em um barril de óleo sob a superfície de um açude em Kaeng Krachan, fragmentos ósseos cujo DNA correspondia ao da mãe de Pawlajii.

Chaiyaphum

Em 2016, Den Khamlae, líder da comunidade Khok Yao na luta pelos direitos à terra na província de Chaiyaphum, no nordeste do país, também desapareceu em circunstâncias misteriosas. Fragmentos de ossos de um crânio humano foram encontrados mais tarde na floresta, e o DNA provou ser semelhante ao de outros membros da família de Den.

Den havia participado de uma luta antiga, disseminada por todo o nordeste da Tailândia, contra o registro oficial de uma Reserva Florestal Nacional em terras há muito ocupadas por pequenos agricultores e contra sua ocupação por plantações industriais de eucaliptos. Sua esposa, Suparb Khamlae, foi presa por apoiar a defesa das terras da comunidade de Kok Yao, sob o argumento de “invasão da floresta estatal”.

Despejo e prisão

Em 2014, ao encenar um golpe militar da Tailândia, o Conselho Nacional para a Paz e a Ordem (NCPO, na sigla em inglês) usou seus poderes constitucionais temporários para emitir a Ordem 64/2014, que dava poderes aos militares para devolver as terras com florestas confiscadas e instaurar processos contra as empresas envolvidas. Na prática, porém, os moradores pobres cujas terras haviam sido tomadas tiveram de enfrentar acusações criminais e civis. Apenas um ano após a emissão da Ordem 64/2014, pessoas de todo o país apelaram à Comissão Nacional de Direitos Humanos, pois a Ordem estava sendo usada para despejar moradores de áreas oficialmente consideradas como florestas, confiscar suas terras e destruir seus pertences sem qualquer controle ou verificação dos fatos.

Entre 2014 e 2019, cerca de 46.600 moradores foram processados por invasão de florestas. Nos tribunais de Chaiyaphum, por exemplo, usando a Lei do Parque Nacional, eles foram presos e despejados de suas terras, e tiveram que pagar indenizações por danos.

[caption id="attachment_17467" align="aligncenter" width="463"] Um cartaz oficial de divulgação da província de Phitsanuloke: “Devolvam as florestas ao país”.[/caption]

Foram movidas ações criminais e cíveis não apenas em relação a terras com florestas, mas também a outras terras públicas, bem como alguns dos cerca de 410 processos contra ativistas do P-MOVE, uma rede de movimentos por justiça social. Segundo essa rede, também aqui, as terras das aldeias foram apreendidas e seus moradores foram presos ou sofreram processos cíveis por danos à natureza. (1)

De acordo com a Human Rights Watch, entre 2016 e 2018, a Comissão Nacional de Direitos Humanos da Tailândia recebeu mais de 100 denúncias de tortura nas províncias sulistas de Pattani, Yala e Narathiwat, onde os militares usam rotineiramente uma combinação da Lei Marcial com o Decreto Emergencial sobre a Administração Pública em Estado de Emergência para deter e interrogar pessoas por até 37 dias sem acusação nem acesso a advogado. (2)

E embora o Conselho Nacional para a Paz e a Ordem tenha sido formalmente dissolvido em julho de 2019, quando um novo governo assumiu, a atual constituição tailandesa isenta seus membros e qualquer pessoa que tenha agido sob suas ordens de responsabilidades por violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar. Muitos críticos afirmam que o NCPO ainda está intacto e ocupa posições de poder.

A borracha como árvore criminosa

As plantações de seringueiras em áreas de florestas públicas foram declaradas ilegais de acordo com a política do NCPO, mas as pequenas plantações dos moradores têm sido o principal alvo. Militares e autoridades civis cortaram as seringueiras dos moradores e os forçaram a assinar acordos para entregar as terras onde vivem ao Estado ou sofrer ações judiciais.

As autoridades justificam essas ações e intimidam a população rural que é alvo delas ao alegar que os moradores são, na verdade, capitalistas ou que estão sendo apoiados por grandes empresas.

[caption id="attachment_17466" align="aligncenter" width="600"] Autoridades removem as seringueiras dos moradores.[/caption]

Moradores das aldeias como bodes expiatórios

Na Tailândia, empresas britânicas receberam concessões madeireiras muito antes da fundação do Departamento Florestal Real, em 1896, e isso continuou acontecendo com as plantações de teca até cerca de 1954, quando as concessões estrangeiras acabaram, juntamente com a maior parte dos recursos de teca do país. Naquele momento, empresas paraestatais (ou seja, pertencentes ou controladas total ou parcialmente pelo governo) começaram a trabalhar em concessões para extração de madeira de lei. Entre 1961 e 1985, a área com florestas da Tailândia encolheu de 53% para 28%. Entre 1981 e 1985, os índices de desmatamento do país estiveram entre os dez maiores do mundo, com as operações madeireiras estatais desempenhando um papel importante na devastação.

Em 1988, a exploração madeireira foi proibida na Tailândia como resultado dos esforços das comunidades rurais para proteger as florestas, juntamente com uma mobilização ambiental popular após inundações catastróficas no sul do país. Ainda assim, enquanto o Ministro da Agricultura da época, que ordenou a proibição, recebeu ampla aclamação pública por sua ação, os sacrifícios dos moradores que pressionaram por essa proteção da floresta foram, em grande parte, esquecidos. E, ao invés do Estado e das empresas, eles se tornaram os bodes expiatórios do desmatamento. A conservação florestal oficial se concentrou na aplicação da lei contra os moradores rurais.

Leis florestais para quem?

No início de 2018, a construção de um conjunto habitacional para funcionários do Poder Judiciário do governo tailandês nas encostas do Monte Suthep, em Chiang Mai, atraiu fortes críticas do público por ter destruído uma área de floresta densa. A terra estava originalmente em posse do exército e, portanto, não havia sido declarada como área florestal de acordo com a lei, mas ficava perto de um Parque Nacional que os críticos alegavam ter sido invadido.

Para os manifestantes locais, os dois pesos e duas medidas eram claros: o Estado estava constantemente confiscando terras de moradores comuns e florestas comunitárias por motivos de “conservação”, embora ele próprio fosse um importante infrator florestal. Em meados de 2018, o governo foi forçado a encerrar o projeto habitacional e reflorestar a área.

Uma história que continua

As tentativas do governo tailandês de expulsar as pessoas de suas terras datam de muitas décadas, mas se tornam especialmente violentas durante governos golpistas. Por exemplo, o governo e seu chamado Conselho de Ordem e Paz, que assumiu o poder no golpe militar de 1991, lançou um programa de reassentamento para moradores empobrecidos que viviam nas chamadas terras degradadas da Floresta da Reserva Nacional. Da mesma forma, o Conselho – agora sob pressão de protestos liderados por estudantes, embora não esteja formalmente no poder – se serve da aplicação injusta da força militar e do Estado em sua política de retomar terras com florestas por meio dos tribunais.

A implementação da política florestal na Tailândia tende a se basear em números cujas fontes não são reveladas, que afirmam que o país “precisa” de 40% de cobertura florestal – cerca de 20,5 milhões de hectares. Atualmente, em torno de 42% são classificados pela lei como áreas de florestas, embora grande parte delas tenha poucas árvores. Isso transforma, oficialmente, pelo menos 1,9 milhão de habitantes do país, ou cerca de 636 mil famílias e um número não especificado de comunidades, em infratores cujos direitos podem ser legalmente violados sem que tenham muito ao que recorrer.

Com certeza virão mais prisões e confiscos de terras.

Pornpana Kuaycharoen, ativista social com longa experiência de trabalho em questões florestais e fundiárias. É coordenadora da ONG Land Watch Thai.
A Land Watch Thai é uma pequena organização que trabalha com questões fundiárias na Tailândia, tanto em nível local quanto de políticas.

(1) WRM Bulletin 229, 2017, Forest Conflicts in Thailand: State vs. People
(2) Human Rights Watch, Tailândia 2019