No final de maio, como resultado de um sobrevôo pilotado pelo coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental da FUNAI (Fundação Nacional do Índio ) órgão brasileiro que toma conta da proteção dos grupos isolados), várias fotos aéreas revelaram a existência de índios em isolamento voluntário de uma das quatro etnias que vivem nessa situação na fronteira do Estado do Acre (Brasil) com o Peru.
Todas as manchetes do mundo reproduziram as imagens avermelhadas de guerreiros pintados com urucum (fruto vermelho também conhecido como achiote), em posição de atirar suas flechas no avião. Outros integrantes da tribo, desarmados, apareciam pintados de preto com jenipapo (outro fruto usado para a pintura corporal), enquanto mulheres e crianças fugiam para dentro da floresta. Tudo indica que tiveram alguma experiência ruim anterior relacionada com aviões, e a reação deles não dá lugar a dúvidas- querem que os intrusos vão embora...
As fotos também registraram duas grandes malocas localizadas em amplos roçados (espaços abertos na selva, para a agricultura) plantados com muita banana, mandioca, mamão, milho e outras lavouras.
A antropóloga Beatriz Huertas, do Comitê Internacional para a Proteção dos Povos em Isolamento, diferencia os grupos "isolados" daqueles chamados "em contato inicial". Os primeiros se recusam a estabelecer relações de interação sustentada com os integrantes da sociedade que os rodeia, enquanto os grupos que estão em situação de “contato inicial” foram maioritariamente forçados por fatores ou agentes externos a abandonar o isolamento, ficando mais expostos ao contágio de doenças externas contra as quais eles não têm desenvolvido defesas imunológicas.
Contudo, ambos têm um problema em comum: a usurpação dos territórios que habitam por parte dos concessionários petroleiros, madeireiros e ultimamente os sojeiros do lado brasileiro.
É sabido que, em muitos casos, os antecessores desses grupos tiveram experiências de contato “sumamente traumáticas”, e por isso optaram por permanecer isolados.
No caso da Amazônia peruana, Huertas afirma que há no mínimo 14 povos ou segmentos de povos isolados, e a maioria está concentrada na faixa fronteiriça com o Brasil. Ela aponta que, com escassas exceções, praticamente todas as Reservas Territoriais criadas e propostas em favor de povos em isolamento estão invadidas por centenas de madeireiros, vários dos quais vêm se enfrentando ou assassinando os indígenas isolados com quem se deparam. Algumas empresas que têm obtido concessões florestais em áreas próximas aos territórios dos povos isolados, também estão extraindo madeira das reservas, que “branqueiam” através de concessões e licenças.
Em entrevista concedida à Terra Magazine (1), a antropóloga afirma que “Os problemas acarretados pela extração ilegal de madeira na fronteira Brasil- Peru vêm sendo denunciados intensivamente desde 1998. A partir de então, os governos de ambos países têm formado comissões para resolverem o problema, mas nunca chegaram a acordos claros nem realizaram ações contundentes para deter a situação".
Apesar de existirem informações e denúncias disso tudo, algumas dessas empresas contam inclusive com o benefício de comercializar a madeira com o adicional da certificação, que aduz garantir aos consumidores que os produtos são elaborados com madeiras provenientes de uma exploração “sustentável", o que implicaria o respeito dos direitos territoriais de seus habitantes originários.
O Comitê Indígena Internacional para a Proteção dos Povos em Isolamento e Contato Inicial da Amazônia, o Grande Chaco e a Região Oriental do Paraguai (CIPIACI) declarou em um comunicado que: “O deslocamento de populações indígenas em situação de isolamento voluntário do sul de Ucayali para o território brasileiro seria decorrente das agressões e ameaças constantes que vêm sofrendo em seus territórios originários, no Peru". "Em efeito, esse tipo de deslocamento vem se dando nos últimos anos devido à invasão dos territórios desses povos irmãos, principalmente por madeireiros e por grupos evangélicos que os perseguem para contatá-los e evangelizá-los”. (2)
O registro fotográfico dos indígenas “invisíveis” gerou certa sensibilidade que fez com que o Comitê Indígena Internacional para os Povos Isolados pudesse revelar a situação. É o que faz a Dra. Beatriz Huertas, percorrendo neste mês a área da fronteira entre o Brasil e o Peru, em companhia de um líder da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes (FENAMAD) e índios ashaninka da aldeia Apiwtxa e anuncia que: “Vamos realizar um relatório sobre a questão e apresentá-lo junto aos governos do Brasil e do Peru e aos organismos internacionais de defesa dos direitos humanos. Na medida de nossas possibilidades, vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para que o problema seja atendido".
A divulgação das fotos dos indígenas isolados na fronteira Brasil- Peru teve repercussões positivas, mas a antropóloga alerta: “É preciso, porém, ter cuidado com certos jornalistas que se mostraram muito interessados em viajar até a região para estabelecer contato com o intuito de obter imagens dos índios isolados. Isso pode ser catastrófico e acabar na morte de todo o grupo por causa do contágio de doenças e inclusive do enfrentamento que puder surgir".
“Temos propugnado o direito à autodeterminação e isso significa o direito desses povos a decidir livre e voluntariamente sobre as formas de vida que querem ter, sem forçar contatos ou ações que atentem contra esse direito, contra essa vontade. Eles estão isolados e é preciso respeitar o isolamento. Do mesmo modo, se eles procurarem contato, deveremos respeitar a decisão deles, mas não podemos de jeito nenhum forçar os contatos”.
Artigo baseado em:
(1) “Comisión hará informe sobre indios aislados entre Brasil y Perú”, 12 de junho de 2008, http://www.co.terra.com/terramagazine/interna/0,,OI2944081-EI8865,00.html;
(2) “Indígenas de Sudamérica exigen ‘respeto’ para los pueblos no contactados”, 5 de junho de 2008, http://www.survival.es/noticias/3370; comentários pessoais de Beatriz Huertas.