A reconquista da terra pelos Tupinikim e Guarani

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Introdução

No dia 27 de agosto de 2007 o Ministro da Justiça, Tarso Genro, assinou as portarias de delimitação das Terras Indígenas Tupinikim (14.227 ha) e Comboios (3.800 ha), totalizando 18.227 ha.
Pelas portarias, o governo brasileiro reconhece que as terras são tradicionalmente ocupadas pelos Tupinikim e Guarani e que nos últimos 40 anos estavam ocupadas ilegalmente pela Aracruz Celulose.

Foi uma vitória da resistência indígena contra o poder econômico e político da empresa e de seu multiplos aliados. Uma vitória da vida e uma derrota, ainda que localizada, da monocultura e do deserto verde. Uma vitória ainda da solidariedade nacional e internacional que anima e enche de esperança a todos aqueles que lutam por seus direitos e acreditam na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Nestes últimos 40 anos nem os sucessivos governos, nem a empresa, conseguiram quebrar esta resistência. O uso da força policial, acordos ilegais e compensações financeiras não foram suficientes para impedir as comunidades indígenas de continuarem a lutar pela recuperação de suas terras e pela garantia de um território autônomo sem a dependência econômica que a empresa sempre tentou impor a eles.

A luta de resistência

O processo de ocupação das terras indígenas pela Aracruz Celulose iniciou-se no final dos anos 1960 e rapidamente provocou profunda desestruturação nas formas sociais, econômicas e culturais, principalmente dos Tupinikim, quase levando-os ao extermínio. De imediato ocorreu a expropriação de suas terras e a destruição de quase todas as aldeias (das quase 40 restaram apenas Caieiras Velhas, Pau Brasil e Comboios). A substituição das matas nativas por eucaliptos inviabilizou práticas tradicionais de subsistência. Córregos e riachos secaram e os poucos que restaram tiveram suas águas poluídas pelos agrotóxicos utilizados pela empresa.

Cercados pelos eucaliptos e com poucas alternativas de sobrevivência econômica os Tupinikim e Guarani decidiram agir. Em 1980, em plena ditadura militar, realizaram a primeira auto-demarcação de suas terras e recuperaram 6.500 ha. No ano seguinte um acordo entre os militares e a empresa reduziu as mesmas para 4.491 ha.

Em 1993, os índios reivindicaram da FUNAI a ampliação das terras. Estudos do órgão, realizados entre 1994 e 1997, reconheceram o direito e a necessidade de uma ampliação das terras em mais 13.579 ha. Porém, novamente o governo brasileiro submeteu-se aos interesses da empresa e determinou, em 1998, a demarcação de apenas 2.571 ha.

Revoltados com a decisão do governo os índios realizaram a 2ª Auto-demarcação. Quando estavam próximos da conclusão da demarcação dos 13.579 ha o governo federal determinou a intervenção da Polícia Federal. As aldeias foram ocupadas pela polícia, apoiadores da causa indígena foram presos e processados e os caciques levados à Brasília e lá obrigados a assinarem um Acordo ilegal com a empresa. Em troca da redução das terras receberam compensações financeiras.

Sete anos depois os Tupinikim e Guarani decidiram romper este Acordo. No dia 19 de fevereiro de 2005, cerca de 350 indígenas, reunidos numa Assembléia Geral, com o tema “Nossa Terra, Nossa Liberdade”, decidiram pela retomada dos 11.009 ha em poder da Aracruz Celulose.

No dia 17 de maio iniciaram a 3ª Auto-demarcação. Poucos dias depois reconstruíram as aldeias Olho D´Água e Córrego do Ouro, duas das quase 40 aldeias destruídas pela empresa no final da década de 60.

Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal do Espírito Santo (MPF-ES) instaurou um inquérito civil público, o qual constatou várias ilegalidades na demarcação de 1998. Em seguida, enviou recomendações ao Presidente da República e ao Ministro da Justiça para procederam a demarcação dos 11.009 ha restantes.

A partir daí, os índios realizaram uma seqüência de ações, todas com o objetivo de exigir do Ministério da Justiça o cumprimento das recomendações do MPF-ES.

Ainda no ano de 2005 ocuparam as fábricas da Aracruz Celulose durante 2 dias, uma ação organizada pela Comissão de Caciques com ampla repercussão internacional.

Em janeiro de 2006 os índios foram surpreendidos por uma violenta operação da Polícia Federal para cumprir uma decisão judicial de reintegração de posse em favor da empresa. Esta ação, considerada irregular pelo MPF-ES, resultou na destruição das aldeias Olho D´Água e Córrego do Ouro e no ferimento de 13 indígenas. Uma das principais irregularidades apontadas foi a participação ativa da Aracruz Celulose, autora da ação judicial e portanto beneficiada pelo cumprimento da mesma.

A operação policial foi um “tiro no pé” do governo federal e da empresa, dado a sua repercussão internacional e por causa da ação movida pelo MPF-ES contra a União por conta das inúmeras irregularidades. O governo federal tratou logo de corrigir o erro. Em reunião pública na Assembléia Legislativa do Espírito Santo, o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, prometeu concluir a demarcação dos 11.009 ha até o final de 2006.

Porém, o processo administrativo continuou a caminhar lentamente. Os índios então, decidiram novamente realizar ações de grande impacto. No mês de setembro/2006, durante 15 dias, fizeram o corte e a queima de 100 ha de eucalipto para demonstrar que, ao contrário das acusações, não estavam interessados nos eucaliptos e que a luta era pela recuperação das terras. A reação da empresa foi imediata. Uma campanha difamatória e racista contra os índios invadiu as ruas, as escolas e o comércio da cidade de Aracruz, envolvendo também empresas da região. Outdoors são colocados nas ruas principais da cidade com dizeres racistas e ofensivas aos índios. Duas grandes passeatas foram realizadas, uma em Aracruz e outras na capital do estado, Vitória. Uma ação do MPF-ES, acolhida pela Justiça, condenou a empresa por crime de racismo e difamação obrigando-a a recuar. Porém, a campanha já havia conseguido jogar parte da população de Aracruz contra os índios.

Abalados, mas não intimidados, os índios ocuparam o porto por onde é exportada a celulose da empresa (Portocel) para intensificar a pressão sobre o Ministro da Justiça. Mas, a empresa conseguiu mobilizar cerca de 1500 trabalhadores seus e de empresas terceirizadas para retirar os índios à força, quase provocando um massacre dos indígenas.

No mês de janeiro de 2007 o ex-Ministro da Justiça, apesar de dispor de todos os elementos necessários para assinar as Portarias de Delimitação das terras indígenas, devolveu os processos para a FUNAI para que o órgão buscasse um entendimento (acordo) entre as partes. A FUNAI, por sua vez, recusou-se a cumprir esta determinação, mas a Justiça Federal da cidade de Linhares(ES) decidiu assumir esta tarefa e intimou as partes para celebrarem um acordo sobre as terras. Após duas tentativas, frustradas pela firme posição dos índios, o processo de negociação é encerrado e a decisão sobre a disputa é remetida novamente para o poder executivo.

No dia 5 de julho deste ano a FUNAI remeteu o processo para o Ministério da Justiça e desta vez o Ministro, num ato de muita firmeza e habilidade política, assinou as portarias garantindo aos Tupinikim e Guarani os direitos sobre os 11.009 ha de terra, pondo fim a uma disputa de quase 40 anos. Alguns dias antes os índios haviam reconstruído novamente as aldeias de Olho D´Água e Areal como mais uma prova da sua resistência, coragem e determinação.

Por: Fabio Martins Villas, fabio.villas@bol.com.br, Fase/ES and Rede Alerta contra o Deserto Verde