A empresa finlandesa Oy Metsä-Botnia Ab (nome comercial Botnia), fundada em 1973, é a segunda maior produtora de celulose da Europa. Tem quatro empresas subsidiárias, das quais duas estão instaladas no Uruguai: a Compañia Forestal Oriental S.A. (FOSA), para o desenvolvimento de plantações de eucalipto; e a Botnia S.A., para levar a cabo o projeto de instalação de uma fábrica de celulose de um milhão de toneladas anuais.
A instalação da mega fábrica -com toda a infra- estrutura e suas plantas anexas de produtos químicos, mais as plantações de eucaliptos de fornecimento- significa, não apenas para a Botnia senão para a Finlândia como país, o maior empreendimento industrial privado no exterior de sua história. A empresa terá garantida a disponibilidade de grandes volumes de celulose de fibra curta barata, obtida da madeira de suas extensas plantações de eucaliptos, cujo rápido crescimento nos generosos solos uruguaios permite cortá-los após 7 ou 8 anos de plantados.
A empresa encontrou no Uruguai condições muito vantajosas: terras e mão de obra baratas, quantiosas subvenções diretas e indiretas para o estabelecimento das plantações de eucaliptos, enormes benefícios garantidos com a concessão de zona franca -que a isenta do pagamento de impostos- e o uso ilimitado e totalmente gratuito dos abundantes volumes de água doce que exige o crescimento de seus eucaliptos e o processamento da celulose. E ainda cabe adicionar que o Estado uruguaio constrói e mantém gratuitamente a infra- estrutura viária necessária para o transporte da madeira até a fábrica.
As perspectivas de lucros da Botnia no Uruguay são portanto muito auspiciosas, mesmo que sua presença na região é também muito controvertida, como já assinalamos nos boletins Nº 75, 83, 91, 94, 95, 100, 102, 103, que tratam de ações contra sua instalação que remontam a 2003.
Mas a inventiva da empresa para aumentar sua rentabilidade parece não ter limites. A notícia mais recente é a apresentação de um projeto para amparar- se sob o mecanismo criado no contexto do Protocolo de Kioto da Convenção sobre Mudança Climática das Nações Unidas para a redução dos gases de efeito estufa, denominado “mecanismo de desenvolvimento limpo” (MDL). Tal como ja tínhamos analisado no ano 2000 (vide boletim do WRM Nº 37), este instrumento autoriza os poluidores a “compensar” suas emissões na medida em que invistam, em países do sul, em projetos que supostamente reduzem as emissões de gases de efeito estufa.
O fato é que a Botnia apresentou seu projeto MDL neste mês na Facultade de Engenharia da Universidade da República Oriental do Uruguai através de duas consultoras: a uruguaia Carbosur e a finlandesa Poyry. É importante salientar a presença da Poyry (antes chamada Jaakko Poyry), já que esta consultora teve um papel essencial na promoção de monoculturas de árvores de rápido crescimento e plantas de celulose no mundo inteiro, em todos os casos recomendando, obviamente, o uso de tecnologia e assesoria finlandesas.
O projeto MDL da Botnia está baseado em um raciocínio mais complicado que o acostumado em projetos deste tipo. A empresa geraria eletricidade mediante a queima do licor negro derivado do processo de fabricação de polpa da madeira. Essa eletricidade seria usada em seu processo de produção e teria um excedente de 32 MW de eletricidade que venderia à rede elétrica pública (a entidade estatal UTE). Conforme a Botnia, as emissões resultantes da queima do licor negro seriam nulas, por tratar- se de “um material de biomassa renovável” (as plantações de eucalipto), afirmando que “A combustão do licor negro não produz emissões de gases de efeito estufa devido a que faz parte de um ciclo que implica sua reposição por novo crescimento de biomassa” (dos eucaliptos). Onde fica então o MDL? Sempre conforme a Botnia, “Com isso estaria reduzindo emissões de gases de efeito estufa mediante a substituição de geração elétrica a partir de combustíveis fósseis [por parte da UTE] pela geração a partir de biomassa renovável” [por parte da Botnia].
Se o projeto for aceito como MDL, a Botnia recibirá um lucro adicional com a venda dos “créditos de carbono” em um “mercado do carbono” em que numerosos estados e empresas poluidoras estão ávidos por “compensar” suas atividades poluidoras com estes papéis que possibilitam que tudo continue igual... Para a Botnia, é um negócio de arromba: vende a eletricidade que tem em excesso e ao mesmo tempo vende
créditos de carbono.
Contudo, ainda dentro da lógica do MDL há muitas interrogações, em particular quanto à chamada “adicionalidade”. Em efeito, para evitar que sejam concedidos créditos de carbono a projetos que poderiam ser desenvolvidos de qualquer jeito, a Convenção de Mudança Climática estabeleceu regras para garantir a “adicionalidade” do projeto.
Para aderir-se ao sistema é imprescindível que o projeto possa demonstrar que a mitigação de gases de efeito estufa seja devida à implementação do projeto e que essa mitigação não aconteceria sem ele. Porém, se consideramos o projeto no conjunto (desde o corte das árvores até a exportação da celulose) é bem provável –como já veremos mais à frente– que as emissões totais de gases de efeito estufa por parte da Botnia sejam maiores das que teria havido no país sem sua presença.
Outro dos aspectos que são considerados para avaliar a “adicionalidade” é se o projeto requer, para ser comercialmente viável, da atribuição de créditos de carbono. No caso da Botnia, isto claramente não é assim, já que o projeto apresentado para a aprovação da planta de celulose já incluia a queima do licor negro para gerar energia e não só era economicamente viável como também, em palavras de seu presidente “seus custos de produção seriam de cerca da metade daqueles de uma planta moderna de celulose na Finlândia”. (Helsingin Sanomat, 8 de marzo de 2005)
Por outro lado, a Botnia afirma que a diminuição de emissões não seria feita em sua fábrica, senão na empresa estatal de eletricidade, afirmando que “A demanda futura de eletricidade no Uruguai deverá ser satisfeita através da crescente geração a partir de combustíveis fósseis (petróleo e gás natural), os quais emitem gases de efeito estufa”.
Por que é tão certo que os 32 MW de eletricidade que a UTE compraria da Botnia os teria gerado necessariamente a partir de combustíveis fósseis, quando tem em operação três represas hidrelétricas próprias e uma dividida com a Argentina e cabe a possibilidade de desenvolver outras fontes de energia como a eólica, os biocombustíveis ou a solar?
Por outro lado, o cálculo que faz a Botnia quanto a emissões é totalmente simplista. Em efeito, a Botnia sustenta que as emissões resultantes da queima do licor negro são nulas, porque as “compensa” com suas plantações de eucalipto em crescimento. No entanto –ainda assumindo que isso fosse certo- “esquece” mencionar as emissões que gera o projeto em sua totalidade. De um lado, omite mencionar as quantiosas emissões atuais resultantes da construção da fábrica. Do outro lado, também esquece mencionar as emissões resultantes do projeto funcionando no conjunto, quer dizer, as emissões das fábricas de productos químicos associadas à produção de celulose, o consumo de combustível da maquinaria florestal, o transporte em caminhões da madeira até a fábrica, que se anuncia extremamente intenso (há cálculos que falam de até um caminhão a cada 2,5 minutos, as 24 horas, todos os dias do ano), o movimento portuário, o consumo de combustível dos barcos que levam a celulose para as plantas de papel na Finlândia e na China, etc.
Resumidamente, corresponde, em primeiro lugar, estabelecer a linha de base das emissões de gases de efeito estufa antes de começar a construir a fábrica. Isso permitiria analisar seriamente o balanço líquido de emissões de gases de efeito estufa decorrentes da instalação e funcionamento da fábrica da Botnia. Com certeza o resultado será que –no Uruguay- as emissões de tais gases terão aumentado substancialmente, que é precisamente o que a Convenção sobre Mudança Climática pretende evitar.
Porém, neste cenário de ficção, onde a poluição é transformada em mercado e as emissões de carbono em contas correntes, perde-se totalmente de vista que a trama da vida não funciona assim. Em teoria, as emissões poderão ser consideradas “nulas” e “compensadas” pelos eucaliptos em crescimento, mas na prática, estarão todos os dias saindo pela chaminé. Quem sofrerá os efeitos da poluição serão os ecossistemas e as pessoas –uruguai@s e argentin@s- que moram nas proximidades da gigantesca fábrica da Botnia, que não apenas emitirá dióxido de carbono, como também outras tantas substâncias químicas como sulfuretos e inclusive dioxinas, capazes de abalar a saúde das populações vizinhas.
A despeito disso, este mecanismo perverso outorga um verniz “verde” a projetos, atividades e empreendimentos em países do Terceiro Mundo que os condenam a seguir presos à dependência dentro de uma ordem mundial injusta na qual a desigualdade cresce cada vez mais, os bens naturais são explorados sem limites e onde a pobreza e a exclusão importam menos que as necessidades do mercado. Nesse contexto, até a própria mudança climática, um dos problemas ambientais mais graves do planeta, acaba dando origem a mais um negócio -o mercado do carbono- do qual a Botnia agora tenta tirar proveito.
No Uruguai, o Projeto MDL da Botnia constitui um passo mais para reforçar os interesses que pretendem colocar o país --no dizer do conhecido escritor uruguaio Eduardo Galeano-- “na mais pura tradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser florestas e se transformam em celulose em um processo industrial que joga detritos químicos aos rios e faz o ar irrespirável”.