O povo costeiro de Mehuín está localizado na área nordeste da Província de Valdivia, nos limites das IX e X regiões e se localiza em uma pequena bacia onde desemboca o rio Lingue, rodeado de cerros da cordilheira costeira. Tem uma população de aproximadamente 1.700 pessoas, mas convive com 13 comunidades de uns 3.000 indígenas mapuches-lafkenche que descem ao povo a vender seus produtos e a abastecer-se. Existem também setores muito definidos em Mehuín, com suas próprias particularidades culturais. Um deles é o dos pescadores artesanais que habitam preferentemente um setor do povo chamado “la caleta” ao lado do rio Lingue e onde se desenvolve grande parte da vida cotidiana do povo.
Há quase 10 anos, a empresa de celulose chilena Celco S.A. começou a fazer estudos em segredo para instalar lá uma fábrica e construir um ducto que levaria à bacia 900 litros por segundo de resíduos industriais líquidos (Riles). O projeto foi aprovado em maio de 1996 e a resolução ambiental lhe dava a possibilidade à Celco de escolher entre duas alternativas para os resíduos líquidos: despejá-los em um rio, instalando um sistema mais moderno, ou no mar a 35 quilômetros de distância.
Para a empresa, a alternativa mais econômica era chegar ao mar, mas se encontrou com a oposição ao projeto da comunidade de Mehuín, a que desde o início se opôs à realização dos estudos, convencida de que isso garantiria sua aprovação e execução e a conseguinte poluição do mar. Organizou-se uma campanha de rejeição ao uso do mar como lixeira de resíduos poluidores que se chamou NÃO AO DUCTO.
Perante essa oposição, a Celco reagiu com os mesmos argumentos utilizados em outros conflitos no país. O primeiro era tentar impor o projeto como uma decisão da autoridade, dizendo à comunidade que opor-se era um crime para assustá-la. A prepotência e o autoritarismo foram ferramentas fortes e validadas. O segundo passo era convencer às pessoas dos benefícios do projeto, desprestigiando todo argumento e grupo que estivesse contra, especialmente os grupos ambientais aos que se acusava de terroristas e manipuladores. O terceiro passo era oferecer dinheiro, o que era fácil para um projeto que investia USD 1.400 milhões. Ofereceu-se uma escola nova, materiais de trabalho aos pescadores, até um cais para cobrir o ducto que entraria no mar. Também dinheiro para alguns dirigentes, se o conflito acabava. Além disso, a Celco se apoiou no poder dos meios de comunicação afins aos empresários, sendo o jornal de Valdivia o mais decidido defensor do projeto.
O governo tentou impor o projeto como uma decisão adotada por equipes técnicas e que qualquer oposição da comunidade devia ser feita no marco da legislação em vigor. Para o governo o que importava era reafirmar sua política de crescimento econômico e isso significava apoiar todo investimento privado e o modelo florestal fazia parte desse processo.
A Celco tentou ingressar por mar e terra a Mehuín para fazer os estudos, mas achou uma comunidade já muito organizada e que tinha conseguido sensibilizar grande parte da opinião pública. O governo estava exposto ao olhar do país e de parte da comunidade internacional que olhava com preocupação o que acontecia nos conflitos ambientais e indígenas, bem como a forte repressão que existia em algumas áreas mapuches. Perante a iminente derrota, a empresa e o governo negociaram uma saída ao conflito: aprovar o projeto com a alternativa inicial proposta no primeiro projeto: despejar os resíduos líquidos no rio Cruces com um tratamento ambiental mais moderno e que garantiria menor poluição.
Mas pouco depois de iniciadas as atividades da fábrica, com seu despejos no rio Cruces, os valdivianos começaram a sentir cheiros pestilentos que geraram uma série de medidas de reclamação. O que é pior ainda, uma ameaça silenciosa descia pelo rio Cruces, um caldo químico formado por metais pesados, sulfatos e compostos organoclorados, alimentados por um milhão de litros diários de resíduos industriais líquidos, que inundou as águas do Santuário da Natureza Carlos Anwandter (30 quilômetros água abaixo da Fábrica de Celulose), provocando a morte e migração de milhares de cisnes de pescoço preto.
A crise ambiental conscientizou milhares de habitantes da província e do país. Depois de meses de mobilização, o Presidente da época, Ricardo Lagos, apresentou a “solução” à crise: despejar os resíduos da Celco no mar.
De novo os mehuinenses –que tinham conseguido influenciar o grupo econômico mais poderoso do país e essa idéia de desenvolvimento nacional que de forma simplista considera que o crescimento do país precisa do sacrifício de alguns, apesar de que isso signifique a morte de pequenos ecossistemas do país- estão em pé de resistência. Seu objetivo continua sendo evitar a poluição de suas águas e salvar assim sua única fonte de sustentação. Estão convencidos de que basta a apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental por um grande conglomerado econômico como a Celco, para que ele seja aprovado, e portanto estão dispostos a impedir sua realização na área. O princípio preventivo e as possibilidades de reverter uma decisão da autoridade, utilizando os mecanismos de participação cidadã são nulas. Historicamente, apenas 4% dos projetos submetidos a esse instrumento de gestão tem sido rejeitados e dos aprovados, não mais de 25% são submetidos a uma mínima fiscalização, portanto não é ousado concluir que os Estudos de Impacto Ambiental apenas recolhem declarações de intenções que na maioria dos casos não se cumprirão.
Nesse contexto aconteceu que a comunidade de Mehuín acordou na quinta-feira 17 de agosto com a sirena ativada pelos vigias dos cerros, anunciando a chegada de embarcações no local onde a Celco devia iniciar as medições. Dois rebocadores contratados pela empresa chegaram perto de Punta Chanchán, escoltados pelas lanchas patrulheiras “Chiloé” e “Antofagasta” da Marinha e um navio de guerra com mais de 100 fuzileiros navais, entre os que havia alguns homens encapuzados e embarcações zodiac dispostos para atuar.
Em 20 minutos as embarcações de pescadores chegaram ao lugar para enfrentar a iniciativa. Somaram-se mais 30 barcos de Queule, no sul da Nona Região, os que também se opõem ao ducto. Os agentes públicos atiraram às embarcações de pescadores em reiteradas oportunidades, o que está devidamente filmado. À tarde, depois da fechada oposição dos pescadores, os dois rebocadores se retiraram para o norte e as embarcações da Marinha voltaram para Corral e Valdivia.
O presidente da Federação de Pescadores de Mehuín, Joaquín Vargas, exprimiu que defendem a fonte de trabalho de mais de 400 famílias que vivem da pesca. “Estamos defendendo o direito de trabalhar em um ambiente livre de poluição. É o que cabe ao Estado, velar por um ambiente livre de poluição, salvaguardar o patrimônio de todos os chilenos, como estabelece a Constituição”, disse.
Na opinião de Vargas, os estudos de impacto ambiental não são qualquer garantia para os pescadores, já que sempre acabam sendo aprovados. “Onde funcionam as fábricas de celulose com Estudo de Impacto Ambiental os resultados são patentes. Bem perto podemos vê-lo em Valdivia no rio Cruces. Lá havia cisnes que podiam voar, nós, os pescadores não temos assas para voar”.
Artigo redigido com base em informação obtida de: “El conflicto de Mehuín”, José Araya Cornejo, http://www.wri-irg.org/nonviolence/nvse23-es.htm; e em informação enviada por Vladimir Riesco Bahamondes, Acción por los Cisnes, e-mail: riesco@surnet.cl e por Lucio Cuenca, Observatorio de Conflicto Ambientalista de Santiago, e-mail: “Segundo intento de la empresa por iniciar estudios en la zona. Con presencia de buque de guerra y marinos encapuchados Celco no pudo iniciar estudio para ducto al mar”, Eliab Viguera, OLCA. (Video en: http://www.mehuin-celco.blogspot.com/)