Brasil: a façanha e a falha do cobre de Carajás

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O ano de 2003 começou com a tonelada do cobre a 1.800 dólares. Neste ano o começo foi perto de US$ 3.600, o dobro do valor de 12 meses antes. O déficit no abastecimento do metal chegou a mais de 500 mil toneladas. O cenário, inteiramente distinto do que prevaleceu nos últimos anos, não podia ser melhor para o início das operações na maior mina de cobre do Brasil em todos os tempos. Antes mesmo de ser oficialmente inaugurada, o que está previsto para o final deste mês, com a presença do presidente Lula, a mina do Sossego, em Canaã dos Carajás, no Pará, já está vendendo.

A Companhia Vale do Rio Doce, dona da jazida, uma das cinco que possui na Serra dos Carajás, realizou, no início do mês, o primeiro embarque de concentrado de cobre pelo porto de Itaqui, no Maranhão. Foram embarcadas 16.500 toneladas de concentrado para a empresa alemã Norddeutsche. Assim, sem deixar de ser importador, o Brasil se tornou exportador de cobre. Uma data realmente histórica, embora tenha transcorrido discretamente. Dentro de três anos, com a ativação dos outros projetos em Carajás, o Brasil já aparecerá entre os principais produtores e exportadores mundiais.

A façanha realizada pela CVRD, de produzir e comercializar cobre antes mesmo de inaugurar o empreendimento, foi empanada por outro fato: a constatação de que a empresa praticou o primeiro crime ambiental na área. Agentes do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) constataram, no dia 26 de maio, lançamento de grande quantidade de rejeitos, produzidos durante a concentração do minério, em área da Floresta Nacional de Carajás. O resíduo, sem qualquer tratamento prévio para reduzir sua composição agressiva, poluiu o solo, que também não tinha qualquer tipo de impermeabilização.

Caracterizada a agressão ecológica, a empresa foi multada em dois milhões de reais (US$ 700.000), autuação agravada pelo fato de a CVRD não ter atendido as condicionantes impostas pelo IBAMA quando lhe concedeu autorização para desmatar a área utilizada pela mineração. No início, representantes da Vale ainda tentaram contraditar a autuação, mas a empresa acabou reconhecendo o erro quando decidiu não recorrer da decisão do IBAMA.

A empresa admitiu haver subestimado o volume de rejeito no processo de beneficiamento do minério, que acabou indo além do limite previsto. Mas ressalvou que o trecho de floresta contaminado estava incluído na área que o IBAMA a autorizara a desmatar, em 2002, mas que ela não chegara a derrubar completamente (e que foi deixada para este ano porque a primeira autorização já havia vencido).

Uma ressalva que não reduz o grau da agressão: se causou menos impacto por um erro de previsão de área de desmatamento efetivamente necessária às atividades do projeto, a Vale provocou dano muito maior quando errou na previsão do volume de rejeitos. Ainda mais por não ter cumprido os compromissos estabelecidos na primeira autorização de desmatamento (o que, provavelmente, vai requerer uma segunda autorização, já sob outra conjuntura).

Esse duplo erro, com efeitos positivos (involuntários) ou negativos (conscientes), revela uma margem preocupante de imprecisão e imperícia na operação da empresa, talvez provocada pela pressa em dar partida ao empreendimento para aproveitar as excelentes condições do mercado, abreviando o retorno do investimento feito no Sossego, de 423 milhões de dólares (ou mais de 1,2 bilhão de reais).

É preciso esclarecer se o acidente foi uma fatalidade ou um imprevisto, ou se a Vale decidiu assumir o risco em função dos seus compromissos comerciais, que talvez compensem várias vezes a multa, que pode ainda ser transformada, através de um termo de ajuste de comportamento, em convênio para a aplicação do dinheiro em obras e serviços de interesse do IBAMA ou da ação do governo no setor. Além da autuação da empresa, o IBAMA tem que reconstituir rigorosamente o episódio para que ele não volte a se repetir. A inação, a conivência ou uma apuração limitada pode ser interpretada como cumplicidade para com a atividade mineradora mais agressiva já implantada na Amazônia até agora, que é o beneficiamento do cobre. Tão ou mais grave do que os garimpos de ouro.

Essa gravidade não se expressou na “Nota de esclarecimento” que a CVRD divulgou quatro dias depois do anúncio da multa. Escondendo mais do que revelando, a nota se limitava a dizer que os rejeitos haviam atingido uma área que, mesmo não tendo sido desmatada, “faz parte da área útil da barragem”; e que,.”portanto, não houve nenhum dano ambiental naquela região”. Acrescentava que a companhia estava “realizando o novo levantamento topográfico que servirá de base para a renovação da licença de desmatamento”.

A avaliação da existência ou não do dano ambiental é o passo seguinte ao fato já caracterizado, o crime ambiental. Pode ser que as inspeções acabem chegando à mesma conclusão da Vale: de que a área contaminada pelos rejeitos vai ter que ser mesmo desmatada porque a mineração dela precisa. Mas até lá o dado inquestionável é que a empresa previu mal o volume de rejeito e o depositou em local que não estava autorizado legalmente para esse fim.

Talvez, no futuro, também se chegue a uma outra constatação: de que a Floresta Nacional de Carajás é inconciliável com o uso econômico que lhe foi dado. A floresta foi criada como um cinturão de proteção de emergência (e de oportunidade) contra os invasores de Carajás, que desmataram quase todas as áreas do entorno da província mineral, a maior do planeta. Agora, a criatura pode se virar contra o criador: a floresta nacional, como unidade de conservação, estará sempre ameaçada pela mineração do cobre, por uma inadequação originária? É a questão que cabe responder. De preferência, urgentemente.

Por Lúcio Flávio Pinto, Junho, 2004,e-mail: jornal@amazon.com.br