OMC: o futuro comum de quem?

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Em novembro de 2001, os ministros de comércio de 140 países reuniram-se em Doha, Qatar, para outorgar à Organização Mundial do Comércio (OMC) um novo mandato histórico que poderia intensificar a derrubada de florestas nativas, o esgotamento das pescarias, a queima de combustíveis fósseis, o uso de substâncias químicas tóxicas e a liberação de organismos modificados geneticamente.

Apesar das palestras sobre a mitigação da pobreza e o desenvolvimento sustentável, a declaração ministerial oficial (conhecida como a declaração de Doha) outorga novos poderes à OMC para impedir que os governos regulem as atividades das corporações transnacionais. Ao declarar-se a si mesma como árbitro das crises dos recursos naturais e como foro para determinar a relação entre acordos internacionais conflitivos em matéria de comércio e meio ambiente, o acordado em Doha representa um desafio direto para a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (WSSD, por suas iniciais em inglês) de Johannesburgo, África do Sul.

O novo mandato da OMC abrange assuntos cuja resposta definirá em última instância o nosso futuro comum. A menos que seja enfrentado, o tema do governo a escala global terá sido resolvido pela OMC autoproclamando-se como árbitro de todas as coisas. As corporações transnacionais, que são as que dão forma às regulamentações da OMC, definirão através delas o futuro de incontáveis pequenos produtores rurais, povos de pescadores, habitantes dos bosques, povos indígenes e outras pessoas cuja supervivência depende do acesso e do controle sobre os recursos naturais que existem nas terras comunais do mundo inteiro. As formas de sustentação tradicionais e sustentáveis destes povos estão sob ameaça nos acordos de Doha.

Os acordos de Doha outorgaram poderes à OMC para:

- aumentar o controle das corporações sobre os recursos naturais, permitindo que as decisões sobre seu uso se baseiem a cada vez mais nas demandas no curto prazo dos mercados financeiros mundiais;
- intensificar a exploração dos bosques, a agricultura e a pesca orientadas para a exportação, como também a queima de combustíveis fósseis, a mineração e a exploração de outros recursos naturais;
- eliminar mais políticas de conservação e de desenvolvimento comunitário por considerá-las "barreiras" injustas para o comércio;
- determinar quem se apropria dos remanescentes dos recursos naturais mundiais em grave processo de degradação;
- subordinar os acordos ambientais multilaterais (MEA, por sua sigla em inglês) aos direitos para as corporações estabelecidas nas regulamentações da OMC.

Mais ainda, os objetivos da OMC em matéria de acesso ao mercado, combinam dois impactos perigosos que atentam contra a conservação dos recursos naturais e os meios sustentáveis de vida: 1) a expansão das exportações para um consumo desmedido; 2) a eliminação de disposições legais de proteção para assegurar o uso sustentável dos recursos naturais e para as comunidades locais que dependem deles. Os bosques, a pesca, a agricultura se vêem particularmente afetados por esses impactos. As negociações estão divididas em eliminação de tarifas (taxas à importação) e nas chamadas Medidas Não Tarifárias (ou NTM por suas iniciais em inglês)

As tarifas sobre os bosques constituíram um assunto de grande preocupação por parte dos que protestaram em Seattle, já que os ministros tinham previsto a conclusão de um acordo para essa semana. Conhecido popularmente como o "Acordo Mundial para a Livre Tala ", os ativistas que trabalham pela conservação dos bosques conseguiram que o representante comercial dos EE.UU. apresentasse, pela primeira vez, uma avaliação ambiental da liberalização do comércio, que foi publicada justo antes da cúpula ministerial de 1999. No relatório, realizado por um grupo financiado pela indústria madeireira, os funcionários de comércio ocultaram as verdadeiras descobertas: a redução de tarifas resultaria no aumento da atividade da tala comercial em alguns dos bosques primários mais ameaçados do mundo, que estão habitados por povos indígenas. A redução das tarifas reduz o preço da madeira para os consumidores, e por sua vez, estimula o crescimento do consumo excessivo, especialmente nos países ricos, onde as tarifas são mais altas. A eliminação de tarifas da OMC poderia atentar contra os esforços por reduzir o consumo de madeira e outros recursos, uma prioridade definida na Cúpula da Terra, realizada em Rio em 1992. Apesar disso, o relatório preparatório para Johannesburgo apresentado pelo Secretário Geral da ONU qualifica os acordos de Doha da OMC como um "sucesso".

Considera-se Medida não Tarifária (NTM) qualquer medida, política ou prática governamental que tenha o efeito de "distorcer" o comércio. As NTM sobre bosques definem-se em forma ampla, como qualquer medida que "distorça" o comércio. Inclusive, medidas com uma capacidade "potencial" de exercer impactos sobre o comércio, como a rotulagem ecológica, estão na mira da OMC. A ordem do dia das NTM é o passo final para eliminar todo tipo de controle governamental sobre a regulamentação dos recursos naturais e representa a subordinação de qualquer política cujos objetivos visem, por exemplo, à conservação ou ao desenvolvimento comunitário, à expansão do comércio.

O acordo de Doha pode chegar a ser conhecido algum dia como uma declaração de guerra silenciosa contra os direitos dos povos e o planeta. Ameaça o acesso e o controle dos povos pobres sobre os próprios recursos dos quais depende a sua supervivência, agudecendo a espiral de exclusão que afunda a tantos na insegurança e na desesperação. No processo preparatório da WSSD se está falando de convocar à concertação de um "Acordo Mundial" em Johannesburgo. Qualquer acordo realmente significativo deveria iniciar um processo dirigido pelos povos para transformar as instituições econômicas internacionais. De outra maneira, as decisões às que se chegue no âmbito da WSSD serão enfraquecidas pela OMC, o FMI, o Banco Mundial e as corporações mundiais às quais essas instituições servem.

Enquanto os entusiastas do livre comércio mundial qualificam os resultados de Doha como uma vitória na guerra mundial contra a pobreza, e continuam "convencidos de que as políticas comerciais e ambientais podem e devem apoiar-se mutuamente", as contradições entre os objetivos de Doha e Johannesburgo são a cada vez mais evidentes.

Diante da perspectiva muito real de que o governo mundial seja usurpado pelas corporações transnacionais através da OMC, a sociedade civil deve utilizar o processo de Johannesburgo como veículo para desafiar os objetivos de Doha e intensificar seu questionamento às atuais instituições econômicas mundiais. Independentemente dos resultados oficiais da WSSD, o processo dos povos, como em Seattle, pode e deve, em última instância, substituir à OMC por um sistema verdadeiramente democrático que dê valor à vida diante do dinheiro e aos direitos dos povos diante dos direitos das corporações.

Longe de ter finalizado, a resposta da sociedade civil aos acordos de Doha acaba de começar: as organizações de base do mundo inteiro utilizarão a Cúpula Mundial da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável como um veículo organizativo para responder aos objetivos definidos em Doha. O "processo dos povos" de Johannesburgo será apenas uma das várias convergências necessárias para substituir a aposta da OMC em favor das corporações, por uma pauta internacional dos cidadãos que proteja os interesses dos pobres e do planeta. Se não for assim, Doha será conhecido como o momento da história em que o governo mundial foi verdadeiramente usurpado.

Tirado de: "From Doha to Johannesburg", Victor Menotti, International Forum on Globalization, http://www.ifg.org/doha.htm